Esse é um drama
comum em toda América Latina, onde muitas mulheres se tornam vítimas de abuso
sexual, frequentemente quando ainda são adolescentes. "Os estupros
realizados com a ajuda de drogas eram raros quando comecei a trabalhar com o
tema", diz Maria Elena Leuzzi, presidente da ONG Ajuda a Vítimas de
Estupro, organização que é referência para vítimas de abuso sexual na
Argentina. "Hoje são mais frequentes. É muito fácil conseguir essas
substâncias."
Leuzzi diz receber
ao menos quatro telefonemas por fim de semana de mulheres contando a mesma
história: divertiam-se em festas ou casas noturnas de Buenos Aires e, depois,
não se recordavam de mais nada.
Casos assim se
repetem por todos os países da região. "Só na Cidade do México, mais de
300 mulheres são estupradas por ano sob o efeito de drogas, e o número é cada
vez maior", afirma Laura Martínez, presidente da Associação para o
Desenvolvimento Integral de Pessoas Estupradas (ADIVAC, na sigla em espanhol),
a única organização civil que atende casos de violência sexual no México.
Com 20 anos de
experiência no laboratório de química forense da Procuradoria de Justiça da
Cidade do México, o toxicologista Carlos Díaz faz um cálculo semelhante.
"Em média, analisamos uma denúncia por dia. É notório que o uso de
substâncias que facilitam o estupro está aumentando. E a grande maioria das
vítimas tem menos de 25 anos de idade."
Díaz adverte que
existe "um catálogo cada vez mais amplo de substâncias psicotrópicas"
usadas para se cometer abusos sexuais. O objetivo é sempre o mesmo: anular a vontade
da vítima e transformá-la em um "brinquedo" na mão no agressor. Um
brinquedo que não terá qualquer lembrança do ataque.
Ao alcance da mão
No caso de Cristina
(nome fictício), a primeira coisa que ela viu ao acordar foi o tapete vermelho
do quarto de hotel. Seus braços e pernas doíam. Sua roupa estava espalhada ao
lado da cama. Em uma pequena mesa, sob uma luminária, o relógio marcava 13h.
Dezesseis horas
antes, ela havia se arrumado na casa de uma amiga da faculdade para irem juntas
a uma festa. Cristina se lembra de ter conhecido um rapaz, com quem conversou e
dançou salsa. Não sabe por que pediu que a amiga fosse embora.
A ONU já alertava em
2010 para o rápido aumento do uso das "drogas de estupro" e o
surgimento de novas substâncias do tipo.
O relatório anual da
Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE) apresentado naquele
ano destacou a "evolução muito rápida" desses crimes e ressaltou o
fato de que, em muitos países, narcóticos usados com este fim são vendidos sem
controle.
No caso da América
Latina, as drogas mais usadas são a benzodiazepinas, obtidas facilmente em
qualquer farmácia.
Foi essa a
substância encontrada nos corpos das turistas argentinas María José Coni e
Marina Menegazzo, assassinadas na cidade costeira de Montañita, no oeste do
Equador.
Isso reforça a
teoria de suas famílias, para quem as jovens foram drogadas e conduzidas pelos
acusados até suas casas, sem conseguir resistir.
"Os
estupradores sabem quais quantidades levam a um estado de sedação e à perda de
memória. Ao misturar com álcool, o efeito é potencializado", diz Emilio
Mencías, do Instituto Nacional de Toxicologia e Ciências Forenses da Espanha.
As benzodiazepinas
são drogas de efeito sedativo e hipnótico receitadas para o combate a estresse,
crises nervosas, sonolência e ansiedade.
Ainda que em muitos
países se costume exigir uma receita médica ao vendê-las, os controles são
facilmente burlados. Em outros, nem a receita é necessária, segundo a ONU.
Da Burundanga ao GHB
A burundanga, talvez
a "droga de estupro" mais conhecida na América Latina, cresce de
forma silvestre em quase toda a região.
Chamada também de
estramônio, trombeta ou "sopro do diabo", ela tem como princípio
ativo a escapolamina.
Segundo o
Departamento de Saúde dos Estados Unidos, este alcaloide provoca desorientação,
alucinações, amnésia e, em doses elevadas, pode ser mortal.
No entanto, apesar
da fama, é cada vez menos usada em abusos sexuais.
"Ela incapacita
a vítima, mas também pode torná-la agressiva. Não é prática para o criminoso,
que prefere outras drogas", diz Pilar Acosta, médica do hospital Santa
Clara de Bogotá e vice-presidente da Associação de Toxicologia Clínica
Colombiana.
Uma das drogas
silenciosas que está substituindo a burudanga é o GHB.
Seu nome científico
é ácido gama-hidroxibutírico e é difícil detectá-lo. Ele é usado com fins
medicinais no tratamento do alcoolismo, mas seus usos ilegais são mais
frequentes e conhecidos.
A substância também
é chamada de êxtase líquido, porque seu primeiro efeito é a euforia. "Não
é complicado de sintetizar - e alguns criminosos até o preparam com removedor
de tinta", afirma Díaz.
O GHB não tem odor
nem cor - o que faz com que a vítima não perceba que ingeriu a substância.
Foi o que aconteceu
com Andrea, no Peru. Ela sempre foi tímida, mas sua última lembrança da noite
em que a estupraram é de estar dançando em cima do bar de uma boate em um
balneário ao sul de Lima. Estava irreconhecível.
Ela havia tomado uma
bebida oferecida por dois jovens e, logo, estava beijando um deles. Depois, foi
com eles para o estacionamento. Acredita que entrou num carro cinza, mas não
tem certeza.
O Centro de
Informação para Educação e Abuso de Drogas do Peru (Cedro) alertou que, no
último verão, a venda de GHB se popularizou nas praias de Lima.
Representante da
instituição, Milton Rojas explica que as drogas sintéticas ficaram mais baratas
no país e jovens que antes não as compravam agora conseguem fazê-lo.
À BBC Mundo,
representantes da Organização Mundial de Saúde (OMS) destacaram que os
controles internacionais do comércio de GHB são mínimos.
Para o órgão, nem o
uso legal da droga se justifica, porque há medicamentos mais seguros para
tratar as mesmas doenças e condições.
Estupros sem
registro
Os dramas de
Cristina e Andrea ainda são invisíveis. Na América Latina e na Espanha, há uma
ausência significativa de observatórios especializados em abusos sexuais que
envolvam fármacos. Nem os especialistas da agência da ONU contra Crimes e
Drogas, a UNODC, têm estatísticas precisas.
"É arriscado
dar números exatos, porque eles não existem. Analisamos oito ou nove denúncias
por semana. Isso ninguém pode refutar", afirma Díaz.
A pouca informação
existente na região é fragmentada e depende quase sempre de iniciativas
isoladas de governos.
Na Colômbia, o
relatório mais recente foi feito pela Universidade Nacional, após reunir
documentos do Grupo de Elite de Delitos Sexuais, uma unidade de investigação
especializada criada em Bogotá.
Entre junho de 2013
e março de 2014, foram denunciadas 184 agressões sexuais só na capital colombiana,
das quais 53, ou quase um terço, foram facilitadas por drogas.
Ter informações
exatas sobre esses casos é importante para criar políticas públicas, assim como
um bom diagnóstico pode curar um doente.
"Estamos vendo
só a ponta do iceberg", diz Mencías, acrescentando que um em cada cinco
estupros atendidos nos hospitais de Barcelona e Madri envolve drogas.
Drogas invisíveis
Diferentemente da
maioria das vítimas, Isabel acordou em sua própria cama. Não lembrava da festa
a que fora na casa de amigos, em Barcelona, e pensou que havia bebido demais,
nada além disso.
Mas logo descobriu
sinais em seu quarto e no banheiro que indicavam que alguém havia estado com
ela. Seu corpo também tinha marcas. Quando foi atendida no hospital,
confirmaram o estupro, mas os exames toxicológicos deram negativo.
"Meu primeiro
conselho para uma vítima quando há suspeita de que ela tenha sido drogada é
fazer exames imediatamente", diz Leuzzi. "As evidências desaparecem
muito rápido." A maioria das "drogas de estupro" são eliminadas
do organismo em menos de 12 horas.
Então, a única
maneira de detectá-las é com um exame capilar, feito em centros especializados.
O processo é mais longo, requer a elaboração detalhada da história clínica do
paciente e, em muitos casos, a vítima deve pagar pelo teste.
Ainda que Isabel
tenha chegado a tempo no hospital, nada foi detectado. Provavelmente porque,
assim como vários países latino-americanos, a Espanha também tem um problema
com seu protocolo médico para o tratamento de casos desse tipo.
"Normalmente,
se busca por cocaína, maconha, benzodiacepinas e álcool. Não se procura por
mais substâncias psicotrópicas, porque o protocolo não exige isso", afirma
Díaz.
O GHB e outras
drogas muitas vezes passam despercebidas pelos exames, que são fundamentais em
um processo judicial por estupro.
Segundo Acosta, na
Colômbia os equipamentos e agentes químicos necessários para detectar essas
substâncias também não são comumente encontrados em centros médicos.
"É uma questão
de custo. Além disso, muitos criminosos aprenderam a usar as drogas mais
difíceis de rastrear", diz a médica.
Sem um exame que
comprove que a vítima foi drogada e muitas vezes sem qualquer lembrança do
agressor, o estupro costuma ser o início de um drama judicial longo e doloroso.
De acordo com o
Instituto Nacional de Toxicologia e Ciências Forenses da Espanha, só uma em
cada cinco mulheres que foram drogadas para facilitar o abuso denuncia.
Isabel se atreveu a
isso e começou um processo legal interminável.
Ela chegou a
reconhecer o agressor nas gravações da câmera de segurança do seu edifício, mas
as imagens só mostram que ela entrou de mãos dadas com ele em casa. O acusado
garante que a relação foi consensual. E, para Isabel, é muito difícil provar o
contrário.
Conselho
Talvez o conselho
mais comum ouvido por uma adolescente que começa a sair para boates é
"Nunca perca seu copo de vista".
E o conselho não é
um exagero. As "drogas de estupro" precisam ser ingeridas para surtir
efeito.
"É um mito que
o simples contato com a substância pode drogar alguém. Nenhuma delas atua desta
forma", diz Mencías.
Mas a quantidade
necessária para drogar uma pessoa é tão pequena e se dilui tão rápido que
bastam alguns segundos de desatenção para que o agressor a coloque em uma
bebida - e, num local de festa, não é difícil um descuido assim.
Para tentar limitar
o uso de fármacos em delitos sexuais, a ONU recomenda que a indústria química
desenvolva medidas de segurança como adicionar corantes e sabores em seus
produtos para que a vítima se dê conta se ingerir a substância. Mas essa é
apenas uma recomendação.
A difusão de
informações sobre o problema é outro passo importante para que ele comece a ser
combatido.
Desde que vários
meios de comunicação e organismos internacionais começaram a denunciar o
crescente uso das "drogas de estupro" e suas consequências, Martinez,
da ADIVAC, passou a receber um tipo inédito de telefonema: de mulheres com
histórias ocorridas meses ou anos atrás.
Elas dizem que
sempre sentiram que algo estranho ocorrera na ocasião. Hoje, afirmam com
convicção: "Fui estuprada."
Reportagem de Martin Riepl
foto:http://anaeufrazio.blogspot.com.br/2014/08/marido-condenado-preso-por-estupro-de-esposa.html
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