02/10/2015

Burocracia atrasa investigação de abusos de tropas da ONU na República Centro-Africana

Há pelo menos 17 denúncias de crianças que afirmam terem sido vítimas de abusos de capacetes azuis e funcionários das Nações Unidas no país.



Os escândalos de abuso sexual cometidos por integrantes da operação de paz da ONU na RCA (República Centro-Africana) dão mais um tom obscuro ao capítulo de instabilidade política e vácuo de poder que vive o país africano desde a década de 1960. São pelo menos 17 suspeitas de violência sexual envolvendo funcionários da ONU e “capacetes azuis” – militares que formam parte do contingente cedido pelos países participantes da missão. Para piorar a situação, a burocracia interna das Nações Unidas atrasa as investigações.
Muitas vezes, um caso pode levar mais de seis meses para ser investigado, e o caminho é bastante sinuoso: a apuração oficial não começa até se definir de quem é a jurisdição. Após uma acusação ser feita, leva uma semana para a ONU analisar se a suspeita procede e mais alguns dias para informar o país de onde provém o violador. Em seguida, a nação envolvida tem 10 dias úteis para apontar se ela própria irá assumir a investigação.
“Se o país de onde vem o violador decide começar a investigar, tem mais seis meses para indicar e nomear um oficial para apurar os fatos. Aí sim a investigação começa e não há prazo para que seja concluída”, diz Paula Donovan, fundadora da ONG AIDS-Free World, que tem sede em Nova York. “Este é um problema enorme. A ONU, que envia pessoas para proteger os cidadãos daquele país, virou o agente que promove os ataques. Agora, os violadores são os que estão sob a bandeira da própria ONU. A responsabilidade de investigar é ainda maior, é dupla. Devem não só proteger os civis, mas tomar medidas imediatas para assegurar que esses violadores sejam repreendidos."
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, já determinou que as investigações sejam concluídas em até seis meses após serem iniciadas. Contudo, para Donovan, o secretário-geral "omitiu-se ao dizer que em muitos casos as investigações nem mesmo começam antes de seis meses após o fato ter ocorrido."

Uma das porta-vozes de Ban afirmou a Opera Mundi que estas denúncias são “apenas alegações”. “Vamos levá-las seriamente, um único caso pode prejudicar o trabalho de muitos que estão em campo. Se comprovadas verdadeiras, vamos colocar a vítima em primeiro lugar”.

A fonte das Nações Unidas admitiu que “levou um tempo” para que as alegações chegassem aos ouvidos do secretário-geral. Uma das medidas para evitar a chamada má conduta por parte dos militares seria evitar que um mesmo contingente permaneça em missão por mais de três anos no mesmo lugar.
Diante das denúncias de crianças violadas por capacetes azuis e funcionários da ONU em missões de paz, a AIDS-Free World lançou, em maio, uma campanha chamada “Code Blue”, para acabar com a imunidade de agentes das Nações Unidas em caso de graves crimes como o de exploração sexual.
Assunto velado
As recentes denúncias que estão vindo à tona na RCA têm manchado a reputação das operações de paz da ONU no mundo. Quando o assunto envolve crimes sexuais dentro da própria organização, o tema parece ainda ser velado.

“A ONU apenas usa a palavra má conduta para descrever esses casos que são crimes violentos”, critica Donovan, que defende a criação de uma comissão independente e isenta para apurar crimes envolvendo tropas de paz ou funcionários das Nações Unidas. Para ela, as péssimas condições em que vivem as forças de paz não devem ser motivo para que crimes desse teor ocorram. “Nenhuma forma de recreação ou de lazer irá determinar se alguém se tornará um estuprador ou não. Este é um pensamento retrógrado e sexista de entendimento sobre violência sexual”, argumenta.
A representante da ONG critica, ainda, a falta de transparência em relação ao andamento das investigações. “Ninguém entende muito bem os procedimentos. Não há transparência e não divulgam informações claras”, afirma. No início de 2014, a ONU já alertava para o alto risco de genocídio entre muçulmanos e cristãos na RCA, um dos países mais pobres do mundo e assolado por confrontos étnicos e religiosos. Na ocasião, um levantamento havia sido feito sobre casos de violação de direitos humanos cometidos por forças francesas.
Má conduta sexual
O chefe das operações de paz das Nações Unidas, o francês Hervé Ladsous, admitiu à imprensa em Nova York, no último dia 11 de setembro, que havia pelo menos 63 alegações de falta de conduta na RCA, das quais, 15 faziam alusão à “má conduta sexual”. Ele afirmou ainda que a maior parte dos casos já está tendo suas circunstâncias apuradas.

“Quinze casos são definitivamente um número alto. Estamos acompanhando de perto para ver quem são os responsáveis. É inaceitável, pois reflete na confiança que existe em relação à ONU. Estamos comprometidos a fazer o que precisa ser feito”, garantiu Ladsous.

O chefe das operações da ONU esteve recentemente na República Centro-Africana e descreveu como “catastróficas” as denúncias contra a força de paz. Algumas medidas já foram anunciadas para tentar amortecer o impacto da divulgação das graves violações, como a suspensão do pagamento dos suspeitos de envolvimento. As medidas punitivas incluem ações disciplinares e até repatriação. Mas ainda não são consideradas satisfatórias pelas ONGs de direitos humanos.

Desde o dia 11 de setembro, quando Hervé Ladsous falou à imprensa, mais dois casos de abuso sexual vieram à tona, passando para 17 o número de denúncias. Sem dar mais detalhes, o porta-voz da ONU Stéphane Dujarric apenas se limitou a informar aos jornalistas que são suspeitas de uma possível “má conduta sexual grave”. E já se sabe que um dos crimes foi cometido por um funcionário civil das Nações Unidas.
Histórico de conflitos
Após a independência da França em 1960, foram décadas de instabilidade na República Centro-Africana, que faz fronteira com o Chade, Sudão, Sudão do Sul, Camarões e República Democrática do Congo.

Desde dezembro de 2013, a RCA virou palco de inúmeros confrontos entre milícias muçulmanas, partidárias do grupo conhecido como Sélèka, e cristãos anti-Balaka. A violência indiscriminada e graves abusos de direitos humanos tiveram início com a eclosão de uma guerra civil há dez anos.

A instabilidade aumentou ainda mais quando um golpe de Estado em 2013, na capital Bangui, promovido pelos militantes do Sélèka, que obrigou o então presidente François Bozizé a fugir para o vizinho Camarões. Bozizé havia assumido em 2003 também por meio de um golpe.

A RCA é um país rico em recursos naturais, com reservas de urânio, minerais como ouro e diamante. No entanto, figura no ranking da ONU com um dos menores IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) — 0.352 —, além de uma expectativa de vida que não passa dos 49 anos de idade e não mais de sete anos de idade escolar. O país está na 180ª posição de 187 países analisados pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

O confronto obrigou que milhares de pessoas fugissem para as áreas de floresta. Mais de 600 mil tiveram que deixar suas casas e estão deslocadas e outras 300 mil fugiram para países vizinhos.
No dia 10 de abril de 2014, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade que fosse instalada uma operação de paz com cerca de 12 mil integrantes para proteger civis e facilitar a assistência humanitária no país. A Minusca, que teve seu mandato renovado em abril deste ano, conta com 10 mil militares, incluindo 240 observadores militares e 200 funcionários e 1.800 policiais.

As Nações Unidas estimam que 2,5 milhões de pessoas necessitam urgentemente de ajuda humanitária e que seria necessária uma quantia de 130 milhões de dólares para garantir assistência humanitária mínima à população. Contudo, menos da metade deste valor foi arrecadado pelas agências humanitárias.


Reportagem de Fabíola Ortiz | Nova York
fonte:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/41745/burocracia+atrasa+investigacao+de+abusos+de+tropas+da+onu+na+republica+centro_africana.shtml
foto:http://www.20minutos.es/noticia/2533801/0/cascos-azules/republica-centroafricana/abusos-menores/

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