O juiz deve ter consciência de que erra, diz o desembargador
Ricardo Dip, do Tribunal de Justiça de São Paulo. A busca pela verdade é o
que deve conduzir a análise de um processo, mas ao juiz restam apenas os
vestígios e testemunhos. Como saciar essa necessidade, no terreno instável da
pós-modernidade? O que se espera quando a linguagem jurídica passa a ser
performativa?
Em entrevista à revista eletrônica Consultor
Jurídico, Dip aborda os dilemas da Justiça frente aos tempos e
a questão da segurança jurídica, tema do qual tratou em diversos de seus
trabalhos. “Toda a sociedade precisa recuperar a ideia de verdade. Porque toda
essa base metafísica em que se apoia o conceito de verdade vai dar apoio também
para as ações morais. Se nós recuperarmos a ideia de verdade, com elas
recuperamos a de bem e, portanto, podemos e sabemos o que exigir do
comportamento moral”, defende.
Ricardo Henry Marques Dip é paulistano, tem 63 anos, 35 dos quais
dedicados à na magistratura. Lecionou nas faculdades de Direito da Universidade
Católica de São Paulo, de São Bernardo, e na pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica de Buenos Aires, como professor convidado. É membro
fundador do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da
Universidade do Porto, acadêmico de honra da Real de
Jurisprudencia y Legislación de
Madri, diretor da Seção de Estudos de Direito Natural do Consejo de Estudios
Hispánicos “Felipe II”, de Madri, e membro do Conselho de
Redação de Fuego y
Raya, revista hispanoamericana de história e política.
Formado também em Jornalismo, atuou na área e foi professor da
Faculdade Cásper Líbero. Supervisiona a biblioteca do TJ-SP, e está preparando
uma edição comemorativa para os 150 anos do tribunal, em 2024.
É autor de Trilogia
do Camponês de Andorra (2003), Direito Penal: Linguagem e
Crise (2000)
eCrime e Castigo: Reflexões Politicamente Incorretas (2004), em colaboração com Volney
Corrêa Leite de Moraes Júnior.
Leia a entrevista:
ConJur — Entre as obras de sua
bibliografia, há um título que o senhor organizou,Tradição,
Revolução e Pós-Modernidade. O que é entendido no meio
jurídico como pós-modernidade? Quais suas implicações?
Ricardo Dip — O livro não é propriamente jurídico. É
um livro feito em homenagem a um importante pensador brasileiro, o jusfilósofo
José Pedro Galvão de Sousa, e trata mais da filosofia da cultura. Em todo caso,
no campo da pós-modernidade, o que me parece grave no ambiente jurídico é a
perda da noção de verdade. De maneira que a linguagem jurídica passou a ser
performativa. Nesse sentido, há um autor italiano que pode ser considerado hoje
paradigmático na matéria, um jurista respeitável, Natalino Irti. Ele escreveu
bastante sobre esse assunto, e é favorável a essa linha do chamado “niilismo
jurídico”. O direito não vale nada, vale a força, o poder de quem manda. E esse
é um problema que nós estamos vivendo no mundo pós-moderno, em que desapareceu
o controle possível da verdade, da objetividade das coisas. É uma nova
sofística. Nós estamos vivendo num tempo em que recuperamos a ideia de Górgias,
de Protágoras, em que não existe mais a verdade. Estamos precisando de um
Sócrates!
ConJur — Corre-se o risco de se cair
num relativismo extremo?
Ricardo Dip — Pois é, chegamos a isso. As teses da
sofística eram três. A primeira delas é nada existe. Portanto, perdemos tempo.
Se existe, não pode ser conhecido. Se conhecido, não pode ser comunicado.
Embora isso teoricamente seja fácil de destruir, na prática não é tão simples.
No fundo, é uma concessão à força, à força de tudo. Que pode ora estar de um
lado, ora estar do outro, e não há controle possível. Faltam critérios
objetivos, realistas, para descobrir o que há de verdade ou não. Toda a
sociedade precisa recuperar a ideia de verdade. Porque toda essa base
metafísica em que se apoia o conceito de verdade, vai dar apoio também para as
ações morais. Se nós recuperarmos a ideia de verdade, com elas recuperamos a de
bem e, portanto, podemos e sabemos o que exigir do comportamento moral.
ConJur — Como falar em segurança
jurídica neste cenário?
Ricardo Dip — Não há, na verdade, segurança jurídica
absoluta em um mundo como o nosso. O que nós procuramos é ter mais ou menos uma
zona confortável em que nós possamos nos orientar. Quando eu era estudante me
interessei por um livro sobre segurança jurídica, provavelmente o melhor
escrito até hoje, A certeza
do Direito, de
um autor chamado Flavio de Oñate. Como ele tinha vivido no período do fascismo
italiano, pensei que ele fosse tratar da justiça. E, para a minha surpresa, ele
fala pouco da justiça. Ele diz que o problema é a falta de segurança jurídica.
Passou o tempo, e eu então descubro uma revista, muito rara, de grande
importância, que é o anuário de um congresso de sociologia jurídica que houve
em 1937, em Roma, e que reuniu o maior número de especialistas em Direito,
professores internacionais, como Le Fur [Louis Le Four],
Délos [Joseph T. Délos] e Radbruch [Gustav
Radbruch].
ConJur — Falava de segurança jurídica?
Ricardo Dip — O tema era “Bem comum, segurança e justiça”
[Le but du droit: bien commun, justice,
sécurité, in Annuaire de l‘Institut International de Philosophie du Droit et de
Sociologie Juridique, ed. Sirey,
Paris, 1938]. Eu leio aquilo e começo a me surpreender, porque os principiais
trabalhos eram todos, no fundo, para dizer duas coisas: primeiro, uma frase
genial do Radbruch, em que ele diz que a segurança jurídica e a justiça vivem
em condomínio. Curiosamente os dois autores, que naturalmente não devem ter
trocado os trabalhos antes, falavam a mesma coisa, que a segurança jurídica era
uma face da moeda e a outra face era a justiça. Então, eu comecei a compreender
que este é o problema. Uma incessante deliberação sobre a justiça levaria a um
resultado injusto. E a gravidade que eu vejo nisso tudo é que a ideia de
segurança não se restringe à jurídica. Porque, no fundo, a segurança é uma
ansiedade antropológica.
ConJur — É uma necessidade básica do
ser humano.
Ricardo Dip — De todos nós. E veja, quando há uma
insegurança, surge uma novidade jurídica. Por exemplo, IPVA prescrito. Vamos
supor que você tenha um carro, e por acaso não pagou o IPVA de 2001. A Fazenda
resolve cobrar agora, mais de cinco anos depois. Quando ela entrava com a
execução, o próprio juiz controlava e às vezes de ofício já reconhecia a
prescrição. O que eles estão fazendo agora? Levam para protesto de títulos a
CDA. Como a certidão de dívida ativa, a prescrição não pode ser controlada pelo
cartório de protesto. Daqui a pouco, teremos uma série de pessoas com o nome
inscrito no serviço de proteção ao crédito. Isso causa um embaraço. É uma
posição provavelmente minoritária hoje na jurisprudência, mas parece que não é
politicamente correto isso.
ConJur — O que tem mudado na relação
do Judiciário com a imprensa? Como o senhor avalia isso?
Ricardo Dip — Os juízes estão
discutindo demais temas que deveriam ficar no palco próprio, que é o
Judiciário. Embora seja em parte um contrasensso dizer isso em uma entrevista,
estou falando para uma publicação especializada no Judiciário. Se nós
acompanharmos o processo na Grécia, vamos verificar que ele tinha um lugar
próprio para ser discutido. E não há vantagem social, a meu ver, em que a
discussão se faça fora do campo público que lhe é próprio, que é o do processo.
O processo já é público, não há necessidade de torna-lo, por assim dizer,
submetido sempre a uma discussão popular. A meu ver, houve um excesso de
exposição dos juízes, dos magistrados em geral, perante a imprensa. O juiz
deveria ficar numa posição de autoridade, que é aquela que nós desejamos se nós
pensarmos no julgamento dos nossos filhos, dos nossos pais, dos nossos netos.
Eu tenho dois netos pequenos. Se um dia um deles se metesse em alguma confusão
e tivesse que ser julgado, eu gostaria que fosse por um juiz sereno, e não por
um juiz que estivesse sempre na mídia.
ConJur
— Para o senhor, juízes pode falar
fora dos autos?
Ricardo Dip — Ainda que não haja proibição de que
fale fora dos autos, penso que é preciso ponderar serenamente quando cabe e
quando não cabe essa exposição. Do contrário, o que nós fazemos é um pouco de
jogo de cena, transformando a Justiça num espetáculo, e isto parece que não
convém. O Judiciário é extremamente polarizado no país. Quando um juiz procura
um órgão de imprensa para manifestar-se fora do processo, pode levar a entender
que é o Judiciário que está falando, quando é uma opinião particular. O juiz
deve, o máximo possível, fora da atividade acadêmica, naturalmente, em que isso
se impõe, deixar para expedir a opinião em casos concretos no processo. É ali
que ele fala.
ConJur — O senhor é a favor da
transmissão ao vivo das sessões?
Ricardo Dip — Sou contra.
ConJur — Por quê?
Ricardo Dip — Por causa de uma possível
espetacularização. Há uma discussão muito sutil aqui, que precisaria ser
aprofundada: o Judiciário não deve ser poder. Deve ser autoridade. Há uma
diferença entre autoridade e poder. O Judiciário deve ter auctoritas, que não deve ser pura
e simplesmente convertida num jogo com o poder, ainda que midiático, capaz de
influenciar e levar até mesmo à perda desse saber socialmente reconhecido. Tem
um livro, de um autor chamado Denis Salas, em que ele conta exatamente como era
o processo penal na Grécia: cada um tinha que estar no ponto marcado no chão,
de tal sorte que aquela cerimônia pública representava efetivamente a ideia da
justiça em camadas, e autorizava o tribunal que a proferia. Se o tribunal começa
a se comportar de maneira tal que se despe desta autoridade, não ajuda o bem
comum. Onde tudo vira igual, desaparece a razão de ser da diferença de uma
autoridade.
ConJur — A imprensa está sujeita ao
segredo de justiça?
Ricardo Dip — Se um processo estiver tramitando em
segredo de justiça, um acesso indevido aos autos parece que impediria a
imprensa também de publicar o que foi considerado sigiloso. Esse é um terreno
admirável. Michel Legris publicou um livro chamado Le Monde tel qu’il est.
Ele tinha sido, durante muitos anos, diretor-chefe do jornal Le Monde, e
conta que certa vez foi publicada uma notícia bombástica. O jornalista foi
chamado a falar aos tribunais, e, pretextando o sigilo de fontes, não deu a
origem de sua notícia. Só muito tempo depois se descobriu que a notícia havia
sido inventada. Então esse é um problema delicado. De um lado, efetivamente
forçar o jornalista a quebrar o sigilo adequado de sua fonte pode levar à
paralisação, a uma censura que não pode ser extensa. E, sobretudo, não pode ser
intensa, em relação aos órgãos de imprensa. Mas a contrapartida também é
delicada, porque, como em todas as funções do mundo, pode haver jornalistas
mal-intencionados. E, pois, acaso possa inventar uma notícia e não dar a fonte,
com determinadas intenções políticas. Isso me parece um tanto preocupante.
ConJur — A maior popularização na
mídia do Judiciário trouxe consequências para o modo de trabalho dos
magistrados?
Ricardo Dip — Tem um aspecto positivo, que eu
reconheço, que é a tomada de consciência de que o processo não é papel. O
processo tem um drama humano. Quando a imprensa começa a colocar o Judiciário
numa posição em que ele aparece perante os olhos, ele começa a ver que não tem
um papel meramente burocrático. Ele está participando dessa tragédia humana de
todos os dias e de todos nós. Aqui me lembro de uma expressão de um dos maiores
juristas do século passado, Francesco Carnelutti. Ele dizia que todo processo
gera uma condenação para quem participa dele. Eu já sofro uma pena quando eu
sofro um processo. Se eu consigo transmitir isso para todo mundo que trabalha
comigo, e se eu próprio mantenho essa consciência viva, o processo é algo que
vai dizer respeito à sua vida, não só ao papel. Então eu começo a ver muito a
responsabilidade de ponderar bem as provas, de examinar, de estudar, de ser o
quanto possível célere.
ConJur — Como lidar com a
necessidade de dar respostas de maneira célere aos casos?
Ricardo Dip — Eu posso contrabalançar os interesses
da ponderação e os interesses da celeridade para prestar o melhor possível a
minha contribuição para que uma tragédia se resolva. Nesse aspecto, ao ver que
sua atividade está sendo contemplada no âmbito social, o juiz perde a ideia de
solidão. Perde a ideia de que seu trabalho está encerrado no seu gabinete.
Nesse sentido me parece vantajoso. Se, em contrapartida, a ideia é pressionar o
juiz a dar soluções de acordo com vontade de um elemento externo, isso me
parece um mal. O juiz deve decidir de acordo com sua ciência e consciência. Em
rigor, eu digo isso, e é um fato muito pessoal: minha consciência, em
determinado momento, está totalmente voltada a Deus. Eu sei que eu vou
responder pelos meus acertos e erros perante Deus. Se nós tomarmos isso, é
possível extrair bons efeitos dessa publicidade que está sendo dada ao
Judiciário. Com a cautela de que não se transforme isso numa pressão indevida
sobre a liberdade de decisão do juiz.
ConJur — Como o senhor
analisa o conflito entre a ideia de direito real e direito dos autos?
Ricardo Dip — Considere um processo penal comum, um
furto ocorrido há três anos, em determinado lugar. O juiz colhe a prova, e veja
que a prova testemunhal traz, num depoimento presente, para alguém que esteve
ausente no momento de fato, um acontecimento pretérito. Compreende como, nesse
meio tempo, o testemunho pode ter sofrido algum déficit de memória, alguma
inclinação de aumento na imaginação? Então o processo sempre nos leva até certo
grau de conhecimento. Todo juiz sabe, quando termina de julgar um processo, que
ele tem alguma certeza, mas a certeza aí é relativa. Não há nenhum caso em que
seja possível, quanto a fatos, ter certeza absoluta. Até porque nós temos que
perquirir no elemento interior. E como eu sei qual é a sua interioridade? É
difícil até julgar o comportamento próprio, imagine julgar o comportamento
alheio.
ConJur — E anos depois, ainda.
Ricardo
Dip — E anos depois. Há um trabalho magnífico, um
discurso feito em duas partes, na década de 1950, pelo Papa Pio XII. Nesse
discurso, Accogliete,
illustri, ele traça quais os requisitos de certeza para proferir uma
decisão condenatória no campo penal. E é muito interessante, de um rigor
espantoso. Eu estive por dez anos no Tribunal de Alçada Criminal, e me serviu
muito para dar a pauta de julgamento. E, sobretudo, perder esta ideia de que os
juízes são infalíveis. Nós temos que ter essa consciência da falibilidade, da
deficiência da nossa capacidade argumentativa, inventiva de descoberta dos fatos.
Nós temos uma limitação de percepção. Agora, imagina o que é a reconstrução
histórica. E que nós temos que basear a maior parte das vezes em testemunhos. E
depois testemunhos dos quais nós temos que extrair um fato e interpreta-lo. Vê
a dificuldade? Eu me lembro, quando eu era moço, de ter lido uma referência que
no início não entendi, de um autor que da “pavorosa função de ser juiz”. Como
pavorosa? Hoje eu entendo. É realmente muito difícil.
ConJur — E como é possível
desempenhá-la?
Ricardo Dip — Não sei. Sou juiz há quase 35 anos. A
gente vai aprendendo, vai ganhando experiência, vai desenvolvendo a prudência.
Vai aprendendo também a lidar com os próprios equívocos, evitando paixões, e
procurando deixar de ver papéis e ver a situação humana. Tentar se colocar na
situação em que se encontram as partes de um processo. Se nós conseguirmos
isso, conseguimos o mais possível uma aproximação com a situação real. Mas,
infelizmente, a gente tem que lidar eventualmente com testemunhos falsos, com
documentos falsos, é inevitável. Essa é a justiça humana. Há um romance muito
interessante, Le
Compagnon, de Claude Orcival. Conta a história de uma mulher chamada
Cathérine, que matou o marido. No julgamento, o advogado, para defendê-la,
começa a criticar o marido. Em determinado momento ela se revolta, pede a
palavra e diz “meu marido não era esse demônio que ele está pintando, não. Eu
sou culpada”. Aquilo foi um escândalo, toda a imprensa noticiou. Ela vai a
júri, e é absolvida. Quando ela vai ser colocada em liberdade, fica
desesperada, e chama o capelão do presídio: “Eu não quero ser absolvida. Eu sou
culpada, eu quero receber uma pena”. E o capelão diz uma coisa muito sábia:
“Essa é a justiça humana: às vezes condena indevidamente, às vezes absolve
indevidamente. E agora a sua pena não vai ser a cadeia, vai ser viver o resto
da vida sem ter sido punida”.
Conjur — Qual seria o juiz ideal?
Ricardo Dip — Em sala de aula eu dizia muitas vezes
para os alunos, no final do curso: o modelo de juiz ideal, para todos nós, é
aquele que vai pegar um processo do nosso filho, do nosso neto, e vai ler. Eu
quero que o juiz leia o processo e veja o caso. E isso é incompatível com o
engessamento excessivo. Eu passo longe de ser um juiz ativista, aliás sou um
crítico do ativismo. Mas acho que é preciso ver caso a caso. Quando eu estava
no Tacrim, levei um caso a julgamento. Eram dois moços que foram jogar futebol,
no final do jogo beberam muito em um churrasco e não estavam acostumados a
beber. No caminho de volta para casa, eles viram uma gaiola e resolveram matar
um passarinho para comer. Era de um compadre. Passada a bebedeira, eles se
deram conta da barbaridade, e voltaram lá para pedir desculpas chorando. O
compadre falou: “Não. Deixa para lá. Esse passarinho custava dez reais. Não tem
problema”. Foram à polícia, se apresentaram ao delegado. A cidade era muito
pequena, o delegado não sabia bem o que fazer, fez o boletim de ocorrência,
mandou para o promotor. O promotor disse: “Isso é caso grave. É furto
qualificado pelo concurso de agentes”. Resultado: foram a julgamento, e
condenados a dois anos de prisão. Não tinha nem direito a furto mínimo. O
advogado apelou por apelar. Chegou o processo à minha mão, eu examino:
evidente, isso é furto. Alguma coisa tem que ser feita para não estimular. Mas
me parece que dois anos de prisão é excessivo. Não tinha, aparentemente, como
sair do sistema, porque não cabia furto mínimo. A orientação da minha câmara
era a de que o furto qualificado nunca poderia ser mínimo. Então, eu disse:
“Esse é um caso diferente”. Aqui voltamos a aplicar o aforismo latino, summum jus, summa injuria,
quer dizer, o excesso de direito acaba sendo um crime. Neste caso,
excepcionalmente, admitimos o furto mínimo e aplicamos uma pena de multa. Cada
um ficou condenado a dez dias de multa. Resolveu-se o problema: a comunidade
não vai se sentir afrontada, porque houve punição. Mas uma punição
proporcional. Percebe que os nossos atos são autênticos na medida e no momento
que os praticamos, que nós sentimos como nossos. É isso que tem que ser
julgado, não uma tese. E aí corre-se o risco de uma certa variação. Eu penso
que há um mínimo, certas categorias que devem ser bem utilizadas, os conceitos
não devem ser alterados. Mas não se pode perder de vista o caso, circunstâncias
que podem alterar muitas vezes um comportamento.
ConJur — As súmulas eram vistas como
uma forma de tornar a prestação jurisdicional mais eficiente. Elas têm sido
obedecidas?
Ricardo Dip — No caso do Tribunal de Justiça de São
Paulo é impraticável controlar o que se processa como um todo, até dentro da
Seção. Imagina que são cinco desembargadores, no mínimo, por câmara, às vezes
há um ou dois substitutos, cada um produzindo 80 a 90 votos por semana. Então é
impraticável dar uma resposta, considerando todas as câmaras da minha Seção,
sem contar a Criminal e a Seção de Direito Privado. Tanto quanto eu saiba, de
modo geral, as súmulas são observadas. O problema é que esses enunciados também
estão sujeitos a interpretação. Vou dar um exemplo, o caso da súmula vinculante
referente às declarações de inconstitucionalidade, da reserva de plenário. O
próprio Supremo fez, com todo acerto, a aplicação da teoria dos motivos
determinantes. Suponha que o município de Mira Estrela baixe uma lei e ela é
copiada por 400 outros municípios. Aí essa lei é declarada inconstitucional
pelo Tribunal Pleno do TJ ou pelo STF. Uma lei idêntica, com o mesmo texto,
também tem que se submeter a esse processo? Imagina o tempo que vai levar.
ConJur — Qual a alternativa?
Ricardo Dip — O
que se pode fazer é aproveitar os motivos determinantes. Aqui não cabe reserva
de plenário. Para chegar a isso eu preciso fazer toda uma análise. E essa
análise provoca um pouco de risco natural na força da súmula. As súmulas
ajudam, até certo ponto, a conter determinadas questões, mas eu penso que até o
próprio Supremo compreendeu que o número de súmulas vinculantes não deveria ser
excessivo. Percebeu-se que cada norma que surge faz também emergir
interpretação, faz eclodir compreensão do texto. E novos problemas, portanto.
ConJur — O sistema dos recursos
repetitivos tem sido útil?
Ricardo Dip — Há certa utilidade. Mas nós vivemos um
período grave na magistratura. O Brasil é um país muito grande, com uma
polaridade institucional evidente. Há certo temor de que os tribunais estaduais
e federais acabem se transformando em cronistas de tribunais superiores. Isso é
um perigo muito grande, até para a própria vitalidade de autoridade dos
tribunais superiores. O papel do juiz de primeiro grau é importantíssimo, ele
depura o processo. O processo, quando chega aqui, já chega com uma primeira
decisão. A mesma coisa se passa lá nos tribunais superiores. Na medida em que
daqui sai um acórdão supostamente razoável, depuramos um pouco mais o processo,
preparamos alguma coisa para que os tribunais superiores possam dar uma solução
melhorada. Se nós começarmos a deixar os tribunais na função ritual de fazer a
crônica dos tribunais superiores, a tendência será não atender à peculiaridade
dos casos. Hoje o perigo é que os nossos juízes, devido ao volume de casos,
possam ser seduzidos pela ideia de só examinar os precedentes das cortes
superiores. Eu tenho 35 anos de carreira e nunca vi dois casos iguais, há
sempre uma peculiaridade que deve ser examinada. Pode ser que a solução sirva,
mas pode ser que não. Daí a importância da doutrina. Não significa reduzir a
importância da fonte pretoriana, mas é permitir que haja outra fonte. Por
exemplo, nas comarcas do interior é preciso que nós voltemos a considerar a
importância do costume. Há certas peculiaridades locais que precisam ser
examinadas.
ConJur — Hoje a gente vê uma quantidade
cada vez maior de pedidos de juízes para morar fora das comarcas em que
trabalham, principalmente em cidades pequenas ou próximas a São Paulo. Isso não
acaba prejudicando esse conhecimento de costumes e o julgamento?
Ricardo Dip — Parece-me que nas comarcas pequenas e
médias a falta do juiz morando no local é decisiva para certo desprestígio institucional.
Eu fui juiz do interior, morei em todos os lugares onde fui juiz, menos na
minha primeira comarca, porque fiquei como convocado. Mas fora isso, eu sempre
morei no interior. Eu me recordo como isso era importante. Ou seja, o dono da
padaria sabia que o juiz morava na cidade e comia do mesmo pão que o povo todo
do lugar. Eu compreendo as dificuldades dos colegas. Tem comarcas em que é
difícil morar, e talvez até não convenha morar. Em comarcas onde há presídios
grandes, um juiz de execução criminal fica muito exposto. Compreendo tudo isso.
Mas do ponto de vista geral, digamos, como regra, é melhor que o juiz resida na
própria comarca.
ConJur — O senhor falou da quantidade
processos que cada câmara julga. É possível que a câmara, tirando o desembargador
que emite o voto, leia todos os casos?
Ricardo Dip — Hoje em dia, aqui no Tribunal de
Justiça pelo menos, as coisas são muito facilitadas. No caso da minha câmara,
nós temos quatro juízes que trabalham juntos há 15 ou 20 anos. A confiança que
um tem no outro é tamanha que o próprio relator chama a atenção do revisor em
questões em que a posição seja contrária. Quando vemos um caso mais delicado,
levamos direto à mesa e alertamos no dia do julgamento. Liminares, por exemplo,
levamos direto à mesa. Não se decide individualmente. No mais, com tanto tempo
de convivência, nós já conhecemos as teses uns dos outros. Mas é impraticável
imaginar que o terceiro juiz vá ver o processo sempre. O relator e o revisor
têm vista dos autos, o terceiro juiz, se não há divergência entre os colegas,
tem que confiar no exame dos autos feito pelo relator ou revisor. Se for
indicar vista em todos os processos, ele não julgará. Nós precisamos encontrar
um meio termo entre a necessidade de ponderação e a necessidade de celeridade.
Eu sou um pouco contrário a essa ideia de justiça fast food que
está aí. Mas também não vamos ao extremo oposto de paralisar os processos com
deliberações incessantes. Pode ser que em 200 processos eu encontre um erro.
Mas a probabilidade que isso ocorra é tão pequena que é melhor deixar para
Embargos de Declaração.
ConJur — O que o senhor pensa dos
projetos de mediação e arbitragem em discussão no Congresso?
Ricardo Dip — Em primeiro lugar, precisamos ter certa
cautela com a ideia de mediação e conciliação do ponto de vista ético. Não me
parece que esteja bem essa quase compulsividade pela conciliação a qualquer
preço. O que tem acontecido muitas vezes é que sobre os pescoços das partes se
coloca uma espada de Dâmocles – ou aceita a conciliação ou não sabemos o que
vai ocorrer daqui a 50 anos. Uma verdadeira conciliação deve ser no sentido de
provocar a concórdia, de colocar juntos os corações. A mediação e a conciliação
devem sempre partir dessa ideia, fomentar concórdia das pessoas, do ponto de
vista moral. Se a coisa for só para resolver de maneira instrumental, para
diminuir o número de processos no Tribunal, não vai dar certo, é momentâneo.
Vira uma espécie de judiciário de pequenas causas.
ConJur — A gente vê cada vez mais, até
por um aumento de quantidade de profissionais, as pessoas caminhando para
especializações dentro da área. O senhor considera que a sua formação em
Jornalismo e Direito ajudou ao longo da magistratura? Seria importante que os
jovens que estão cursando Direito, com a intenção de ingressar na magistratura,
tivessem uma formação também em outras áreas?
Ricardo Dip — Não é propriamente que nós precisemos
fazer outras faculdades, mas precisamos desenvolver um estudo um pouco além da
esfera do Direito. Eu acho que falta um pouco a nós todos, a começar por mim,
uma formação humanística adequada e verificar que o Direito é uma disciplina
subalternada da moral. Se nós não compreendermos isso, se nós tratarmos o
Direito como matemática ou algo assim, o resultado é catastrófico. Se nós formos
utilitários, vamos decidir de acordo com a lei do dia. É um positivismo
jurídico. Hoje vem o direito assim, amanhã vem um sadio sentimento do povo
alemão nazista e a gente aplica também, porque não haverá limites para isso.
Então, eu acho que essa formação humanística é importante. Ainda que não se
faça outra faculdade, o que seria necessário é essa dimensão. Precisamos ir um
pouco além dessa visão disciplinar. O Direito não é feito para nós
jurisprudentes, é para o homem da rua.
Reportagem de Giuliana Lima e Gabriel Mandel
fonte:http://www.conjur.com.br/2014-mai-11/entrevista-ricardo-dip-desembargador-tribunal-justica-sao-paulo
foto:http://muchasleyes.wordpress.com/acerca-de/
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