As mulheres cortam as folhas para
colocá-las nos cestos. Todos os dias, precisam juntar uma cota de, pelo menos,
22 quilos. Magras e sorridentes, suas mãos são as primeiras a dar vida a esse
chá saboreado por milhões de pessoas todos os dias em Londres ou em Nova York.
Seu trabalho, como o de seus maridos e filhos, é mal pago. Recebem 12 centavos
de dólar por quilo ou 17, se conseguem mais de 25 quilos. Se não cumprirem uma
cota diária, não são pagas. E essa história, que acontece todos os dias nas
fazendas ou “jardins” de chá, como são chamados na Índia, se repete há pelo
menos 150 anos, todos os dias, em cada jardim.
Em Assam, no noroeste do país, é colhida
quase a metade do chá que é exportado – preto ou verde, orgânico ou com
fertilizantes. As grandes marcas, como Lipton, são clientes habituais dessas
paisagens onduladas, nas quais o verde parece infinito. Uma delas, de
propriedade da empresa hindu Tata, foi recentemente denunciada por três ONGs
locais por abusos trabalhistas.
As pobres condições de vida e de trabalho nos jardins de chá controlados pela
Tata Beverages através da Amalgamated Plantations Private Ltd (APPL) — uma
empresa financiada parcialmente pelo Banco Mundial – permitem à empresa
explorar comunidades inteiras de trabalhadores. Eles vivem dentro de seus
territórios com salários menores do que dois dólares diários por pessoa, sem
qualquer seguridade social, com poucas oportunidades de estudo e, muitas vezes,
escravizados por dívidas com agiotas e comerciantes.
“Não há muita diferença em relação aos demais jardins”, explica Wilson Hansda,
da People’s Action for Development (PAD, Ação Popular para o Desenvolvimento).
Dentre as 850 fazendas e jardins em Assam, há alguns em que “as condições são
piores e, inclusive, há registros de mortes por inanição de tempos em tempos”,
relata Hansda.
Nada novo, nem para os patrões e nem para o governo da Índia, como mostra um
relatório do Instituto de Direitos Humanos da Columbia Law School apresentado
no último dia 16 de abril em Nova Délhi. O relatório, intitulado “Quanto mais
as coisas mudam...” revela os motivos da ação contra a APPL (e, portanto, Tata)
diante do Compliance Advisor Ombudsman, órgão autônomo de fiscalização do Banco
Mundial.
Tudo começou há um século e meio, quando os
britânicos obrigaram os indígenas a migrar para regiões produtoras de chá como
servos do império e dos agiotas e donos de terras. Então, nasceram fortunas
como a da família Tata, surgida do comércio colonial e da exploração de
recursos naturais.
As tribos do chá
Tendo conquistado o sul da Ásia, os funcionários britânicos encarregados dos
negócios começaram, no século XIX, a produzir as duas ervas mais importantes
para a economia do seu império: o chá e o ópio. Para isso, disponibilizaram a
seus empresários as terras e mão de obra barata, quase gratuita.
Começaram as expropriações de terras em 1830, com agiotas, comerciantes e
policiais assediando as pequenas economias locais e adquirindo territórios
indígenas (quase sempre, por meio da força). Naqueles que hoje são os estados
de West Bengal, Biar, Jharkhand, Orissa e Chhattisgarh, milhares de famílias
adivasis (indígenas), dedicadas à agricultura local e a atividades florestais,
perderam sua casa e seu sustento. “Comercialização forçada” de terras, foi como
chamaram em Londres.
Não era uma política casual. Vários
documentos daquele tempo, como a Tecnologia da Índia, de George Campbell,
afirmavam que os povos indígenas dessa região (santal, ho, oraon, munda) eram
ideais para o trabalho nos campos de chá. De modo que, logo que ficaram na
miséria, muitos se transformaram em coolies, ou carregadores, nos jardins de
Assam e na região vizinha de Darjeeling.
Os santal, hoje uma das maiores comunidades indígenas do país, se rebelaram
contra essas políticas em 1855. Liderados por Sido e Kanu Murmu, milhares de
homens, mulheres e crianças combateram o exército colonial durante dois anos.
Cerca de 20 mil santals morreram na revolta. Como elas fracassaram, a coroa
britânica mudou suas políticas e ditou leis para proteger os direitos dos
indígenas.
Mas isso não mudou sua realidade econômica
e social. Nem acabou com as expropriações. Milhares de trabalhadores indígenas
sem-terra mal conseguiram continuar colhendo chá enquanto ocupavam barracas
insalubres pelas quais pagavam aluguel aos patrões. Assim nasceram as ainda
assim chamadas “tribos do chá”, uma alcunha que serviu para os britânicos se
esquecerem delas e cuja vigência se vale do Estado hindu para negar seus
direitos.
O tempo parou
As duas fotos em sépia que acompanham essa reportagem foram tiradas por volta
de 1870. As fotos em colorido são recentes. O que mudou durante esse tempo em
Assam? Rejina Marandi, jovem escritora e acadêmica santal nascida em Assam, diz
que nas fotos antigas, parece que apenas adultos trabalham nos jardins; “hoje,
inclusive meninas e meninos trabalham lá”. Wilson Hansda concorda com ela: “Nada
mudou muito, está quase a mesma coisa, exceto que hoje você vê crianças muito
pequenas trabalhando nos jardins, o que é verdadeiramente alarmante”.
Três milhões de indígenas trabalham na produção de chá em Assam. Muitos são
crianças trabalhando com seus pais; apenas no três jardins da APPL e Tata, há 3
mil. Não existem escolas nem banheiros para as mulheres, que sofrem profundos
níveis de discriminação, conforme relata Marandi, já que as famílias
privilegiam os homens para receber educação e melhores alimentos.
Por isso, as jovens indígenas que querem algo a mais da vida do que colher chá
procuram trabalho fora dali. “Vítimas do tráfico, são enviadas a diferentes
partes do país e submetidas a diversas atividades, como o trabalho doméstico, e
inclusive a prostituição. São retidas sob ameaças e não recebem salários nem
podem contatar seus pais”, conclui Marandi. Segundo a polícia, apenas em Assam,
durante os últimos dois anos, já “se perderam” cerca de 14 mil jovens mulheres.
Segundo as ONGs, poderia ser o dobro.
Nesses jardins de chá, onde o tempo parou, e as palavras e relações continuam
sendo as mesmas há gerações, segundo Wilson Hansda, foi uma surpresa para a
Ação Popular para o Desenvolvimento (PAD: People’s Action for Development)
saber que os trabalhadores da APPL, em teoria acionistas da empresa, não
melhoraram seu nível de vida com uma reestruturação financiada com quase oito
milhões de dólares pela International Finance Corporation (Cooperação
Financeira Internacional), braço financeiro do Banco Mundial.
“Isso nos deu a base para iniciar nosso envolvimento com os temas de alguns dos
jardins da APPL”, disse Hansda. PAD, PAJHRA (Promoção, Avanço, Justiça e
Direitos Humanos para os Adivasi) e o Diretório Diocesano para o Serviço Social
da Igreja do Norte da Índia apresentaram a denúncia em fevereiro de 2013 para o
Banco Mundial. Assim começou outra história.
Reportagem de Luiz A. Goméz
foto:http://ultimosegundo.ig.com.br/ciencia/foto+do+dia+vizinhanca/n1237995371518.html
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