“O precariado é composto
por aquele setor da classe trabalhadora permanentemente pressionado pela
intensifi cação da exploração econômica e pela ameaça da exclusão social”. Essa
caracterização é do sociólogo Ruy Braga, especialista em sociologia do trabalho
e autor do livro A política do precariado.Do populismo à hegemonia lulista (Boitempo, 2012).Professor da USP, com
pós-doutorado pela Universidade da Califórnia, Ruy Braga concedeu entrevista
exclusiva ao Brasil de Fato.
Nela, o sociólogo fala das condições de trabalho do precariado
brasileiro no setor de telemarketing, área que ele
vem pesquisando em detalhes. Face às estratégias de recrutamento das empresas,
que procuram subordinar os trabalhadores ao despotismo das gerências, Braga
alerta: “o feitiço está virando contra o feiticeiro e uma experiência
coletivamente compartilhada de discriminação racial ou por orientação sexual,
além das lições retiradas da relação com o despotismo gerencial, empurram os
teleoperadores na direção da auto-organização nos locais de trabalho e dos
sindicatos que atuam no setor”.
Brasil de Fato – Seu último trabalho de fôlego é o livro A Política do Precariado. Gostaria
de pedir para que você caracterizasse o precariado brasileiro.
Ruy Braga – Trata-se,
antes de tudo, de uma tentativa de atualização da categoria de superpopulação
relativa desenvolvida por Marx no capítulo 23 do Livro I de O
Capital à luz das
características próprias à reprodução das relações capitalistas de produção em
países da semi-periferia do sistema mundial. O precariado é o proletariado
precarizado, ou seja, um grupo formado por trabalhadores que, pelo fato de não
possuírem qualifi cações especiais, entram e saem muito rapidamente do mercado
de trabalho. Além disso, devemos acrescentar os trabalhadores jovens à procura
do primeiro emprego, indivíduos que estão na informalidade e desejam alcançar o
emprego formal, e trabalhadores submetidos ao manejo predatório do trabalho. O
precariado é composto por aquele setor da classe trabalhadora permanentemente
pressionado pela intensifi cação da exploração econômica e pela ameaça da
exclusão social. Eu retirei do conceito de proletariado precarizado os setores
qualifi cados da classe trabalhadora, os grupos pauperizados e o chamado
lumpemproletariado por entender que aquilo que caracteriza a reprodução contraditória
das relações de produção capitalistas no Brasil é menos a existência de uma
massa de indivíduos pauperizados e rejeitados pelo mercado de trabalho por
invalidez, velhice ou que praticam ações ilícitas para sobreviver, e mais a
ampliação dessa massa formada
por trabalhadores jovens, desqualificados ou semiqualifi cados,
subrremunerados e inseridos em condições degradantes de trabalho.
O que diferencia o precariado do subproletariado, sobre o qual o
cientista político André Singer escreveu no livro Os Sentidos do Lulismo? Que
ocupações seriam típicas de cada fração?
O professor André Singer caracteriza o subproletariado como um
amálgama das frações pauperizada e estagnada da superpopulação relativa, em
especial aqueles que dependem do programa Bolsa Família e que se concentram nos
bolsões de miséria no interior do país ou aqueles inseridos em condições tão
degradantes e sub-remuneradas que se reproduzem em condições subnormais, como
os trabalhadores domésticos, por exemplo. Como disse, retirei a massa pauperizada
e o lumpemproletariado do conceito de precariado e concentrei-me nas frações
“fl utuante”, isto é, os que entram e saem muito rapidamente do mercado de
trabalho atraídos e repelidos pelas empresas conforme os ciclos econômicos,
além da população “latente”, ou seja, aqueles trabalhadores jovens à procura de
um primeiro emprego e os que estão transitando da informalidade para a
formalidade. Assim como André Singer, também incorporo a fração “estagnada”, no
entanto, enfatizo sua passagem para a população flutuante. Para simplificar,
enquanto André destaca a empregada doméstica, eu destaco a fi lha da empregada
doméstica que terminou o ensino secundário e foi contratada pela indústria do call
center.
Neste sentido, gostaria de colocar algumas questões referentes à
pesquisa que você fez nos últimos anos, sobre o trabalho no setor detelemarketing. Qual é o
tamanho desse setor?
A indústria brasileira do call center cresce desde meados dos anos de 1990,
em grande medida, por conta do avanço do ciclo das terceirizações empresariais
associado ao processo de privatizações da era FHC. Já no início dos anos 2000,
o setor do telemarketing já havia se transformado na principal
porta de entrada no mercado formal de trabalho do jovem trabalhador à procura
do primeiro emprego. Uma característica interessante desse setor, desde meados
da década de 2000, é que hoje a região onde o telemarketing mais se expande é a região nordeste do
país. Estimativas realizadas pelos profi ssionais da própria indústria afi rmam
que, muito provavelmente, se somarmos os call centers terceirizados e próprios, o Brasil
deve fechar o ano com quase 1 milhão e 700 mil trabalhadores nesse setor. Isto
faz dos teleoperadores o segundo maior grupo ocupacional do país, perdendo
apenas para os trabalhadores domésticos.
Ao analisar o setor, você diferencia “profi ssão” de “emprego de
empreitada”. No que consiste a diferença?
Na realidade, uma profi ssão supõe certas características em
termos de qualificação, prestígio, estabilidade e remuneração, que, em linhas
gerais, estão ausentes no telemarketing. Uma “profi
ssão” implica a existência, em algum grau, de uma “carreira”, isto é, de
possibilidades reais de progresso ocupacional. O telemarketing é uma atividade que, por suas
características estruturais, bloqueia ou dificulta enormemente a progressão
ocupacional, assim como se trata de um setor que paga muito mal e não exige
qualificações especiais. Como as taxas de rotatividade são muito elevadas na
indústria do call center, entendo ser mais
correto falar em uma atividade realizada por meio da “empreitada”, ou seja,
intermitente, terceirizada e precária.
Em seu livro, você mostra que as empresas do setor de telemarketingadotam
estratégias de recrutamento de trabalhadores considerados “problemáticos ou diferenciados”,
“mais sensíveis e pacientes” e com “certa inclinação a subordinar-se ao
despotismo”. Qual é o perfi l dos trabalhadores inseridos nesse setor e quais
são as estratégias que as empresas utilizam para recrutá-los?
A indústria do call center há tempos tem recrutado
preferencialmente jovens, não brancos, mulheres e gays. Trata-se de uma
estratégia cuja fi nalidade é promover um comportamento mais dócil no tocante
ao ajuste do trabalhador ao regime de mobilização permanente do trabalho
apoiado em altas taxas de rotatividade, na estratégia da terceirização, no
controle despótico do trabalho e na pressão das metas sempre mais difíceis de
serem alcançadas. Quando o grupo de trabalho é formado majoritariamente por
jovens arrimos de família, por exemplo, ou por aqueles que historicamente
ocupam os postos mais discriminados ou sub-remunerados do mercado de trabalho
brasileiro, como gays e mulheres negras, a expectativa das empresas é que estes
trabalhadores comportem-se de maneira mais dócil, subordinando- se ao
despotismo das gerências. Trata-se de uma situação instrumentalizada pela
indústria do call center e cuja característica menos visível,
porém mais “enraizada” na subjetividade operária, é a reprodução de um poder
simbólico fortemente associado ao reforço da condição de subalternidade oriunda
da discriminação racial, sexual ou da orientação sexual. No entanto, esta
situação tem sido revertida desde 2008, ao menos, quando greves passaram a
eclodir com muita frequência na indústria de call center protagonizadas por mulheres negras e
por grupos discriminados. De certa maneira, o feitiço está virando contra o
feiticeiro e uma experiência coletivamente compartilhada de discriminação
racial ou por orientação sexual, além das lições retiradas da relação com o
despotismo gerencial, empurram os teleoperadores na direção da auto-organização
nos locais de trabalho e dos sindicatos que atuam no setor.
Então, como se dá o assédio moral no telemarkentig?
O problema do assédio moral está diretamente associado ao problema
do manejo degradante da força de trabalho. Como o setor trabalha por metas e
estas tendem a se tornar cada vez mais duras é muito comum que coordenadores de
operação ou supervisores descontrolemse com os teleoperadores, cobrando-os aos
berros. Além disso, existe um assédio mais dissimulado que se esconde por trás
de brincadeiras, como o nariz de palhaço, o martelinho de plásticos ou a
camiseta de mico, cujos alvos preferenciais são aqueles que não alcançaram as
metas. Isso sem mencionar a humilhação do tempo exíguo do intervalo e as
negativas pra ir ao banheiro etc.
Ao estudar o setor, você conclui que parte dos riscos recai
sobre os trabalhadores. Por que e como?
Por força do despotismo empresarial que vigora no setor, os
ajustes anticíclicos à fl utuações recaem sempre sobre os trabalhadores que são
sumariamente demitidos e percebem sua remuneração variável cair. Ou seja, como
não há praticamente nenhum obstáculo sério à demissão dos teleoperadores, é o
trabalho que assume a maior parte dos riscos do negócio...
Nesse mesmo artigo, você afirma haver uma “tendência de
despolitização geral do mundo do trabalho”. Gostaria que você explicasse no que
consiste essa tendência.
Esta tendência é produto da consolidação de um tipo de regime
fabril que se apoia sobre a desconstrução das formas de solidariedade
classistas tipicamente fordistas. Quando o desmanche do grupo operário fordista
efetivou-se por meio das terceirizações, do aumento da concorrência entre os
próprios trabalhadores, das reestruturações da base técnica das companhias, da
informatização domeio ambiente fabril, das privatizações, da crise do
sindicalismo militante, do aumento do desemprego (anos de 1990) etc. Durante os
anos FHC, a formação de um novo proletariado pós-fordista acantonado no setor
de serviços e composto por jovens, mulheres, não brancos etc., representou uma
descontinuidade política em relação à classe trabalhadora do período do
nacional-desenvolvimentismo.
No entanto, não devemos exagerar neste argumento, pois, este
grupo pós-fordista está se politizando rapidamente e já alcançou um patamar
respeitável em termos de conquistas sindicais expressas pelo número de greves
que ocorrem no país desde 2008.
Reportagem
de Antônio David
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