Elas são a razão subjacente e, paradoxalmente, um dos
fatores menos citados na discussão sobre uma possível intervenção militar na
Síria: as vítimas de um desastre humanitário que já dura dois anos e meio.
A ONU calcula que o número de mortos desde o início da
guerra civil síria supera 100 mil - mais de 1,4 mil só nos ataques com armas
químicas no dia 21 de agosto, segundo os EUA - e cerca de 2 milhões de pessoas
se aglomeram em campos de refugiados nos países vizinhos.
Apesar disso, até julho, a agência da ONU para refugiados,
Acnur, havia recebido apenas 30% dos US$ 4,4 bilhões em ajuda requisitados
junto aos países membros para prestar auxílio no conflito.
Nações como o Brasil são acusadas de dificultar a entrada de
refugiados sírios, piorando a situação em um país onde mais de 4 milhões já
contam como deslocados.
E enquanto as principais potências mundiais debatem o
destino das armas químicas sírias, organizações e analistas de direitos humanos
lamentam que pouca atenção seja dedicada também à questão humanitária no país.
"Não creio que as discussões correntes façam grande
diferença (para a questão humanitária), porque estão focadas unicamente na
questão das armas químicas", disse à BBC Brasil um porta-voz da Human
Rights Watch em Nova York, Philippe Bolopion.
"Aplaudimos os esforços para garantir que a Síria não
volte a usar armas químicas contra sua própria população, mas eles não mudam
nada em relação às mais de 100 mil mortes que já foram causadas no
conflito."
Questionado sobre se o adiamento da ação militar em favor da
opção diplomática poderia recolocar as necessidades da população civil como uma
preocupação central, Bolopion expressou ceticismo.
"Quisera eu que assim fosse", disse o porta-voz.
"Mas a questão das armas químicas já é um tema demasiado complexo e
divisivo, e se acrescentarmos a dimensão humanitária à discussão corremos o
risco de fazer com que a Rússia dê um passo atrás na sua própria proposta."
Debate precário
A brevidade do debate sobre os refugiados ficou evidente no
conjunto de argumentos que o presidente Barack Obama reuniu na terça-feira à
noite para tentar convencer o cidadão comum a não descartar a opção militar por
enquanto.
"Resisti aos pedidos de ação militar (na Síria) porque
não podemos resolver o problema alheio à força, particularmente depois de uma
década de Iraque e Afeganistão", disse Obama.
"A situação mudou profundamente nas primeiras horas de
21 de agosto, quando mais de mil sírios - incluindo centenas de crianças -
foram mortas por armas químicas lançadas pelo governo (do presidente Bashar al)
Assad."
Apesar da menção aos civis sírios, a explicação do
presidente caminhou para falar do risco da proliferação das armas de químicas -
que não fazem distinção entre civis e militares - não para as vidas sírias, mas
para as de americanos e seus aliados.
"O que aconteceu àquelas pessoas - e àquelas crianças -
não é apenas uma violação do direito internacional: é também um perigo para a
nossa segurança", argumentou Obama.
"Com o tempo, nossas tropas podem enfrentar o prospecto
de uma guerra química nos campos de batalha. Ficaria mais fácil para
organizações terroristas obter estas armas e usá-las contra civis. Se o
conflito extrapolar as fronteiras da Síria, estas armas podem ameaçar os nossos
aliados na região."
Interesses de quem
É compreensível que o presidente, ao se dirigir ao
eleitorado doméstico, enfatize os interesses de seu país ao defender uma
intervenção mais direta na Síria.
No entanto, mesmo em outros contextos, a falta de um plano
contido na proposta americana para reduzir o impacto humanitário da ação
militar é uma das críticas levantadas por ONGs.
Além da questão do financiamento, organizações de
assistência humanitária se queixam da falta de cooperação do governo Sírio em
permitir o acesso a áreas onde a população carece de necessidades básicas, como
alimentos, medicamentos e combustível.
Segundo a Human Rights Watch, 2,8 milhões de sírios dentro
do país vivem em situação de risco à vida por falta de assistência, ainda que a
ajuda esteja, nas palavras de Bolodion, "a alguns quilômetros de
distância", nas fronteiras dos países vizinhos.
Na última quarta-feira, a Comissão da ONU criada em 2011
para monitorar a questão dos direitos humanos no país apresentou um relatório
em que acusa ambos os lados do conflito sírio de cometer crimes de guerra e
contra a humanidade.
Do lado do governo, a comissão recolheu acusações de
massacres contra civis, bombardeios a hospitais e uso amplo de bombas de
fragmentação.
Entre os grupos rebeldes, o órgão, chefiado pelo brasileiro
Paulo Sérgio Pinheiro, disse ter ouvido denúncias de assassinatos, execuções
sumárias, tortura e sequestros.
Fora da agenda
Nada leva a crer que o tema seja discutido em profundidade
pelo secretário de Estado americano, John Kerry, e o ministro do Exterior
russo, Sergei Lavrov, quando se encontrarem para negociar uma solução
diplomática para as armas químicas, em Genebra na quinta-feira.
A Rússia não somente tem bloqueado iniciativas humanitárias
no Conselho de Segurança da ONU, como é acusada de continuar suprindo o governo
Assad de armamentos pesados, como caças.
Outros atores internacionais, como os países emergentes, são
criticados por expressar sua preocupação com o conflito sírio, defender uma
saída política mas continuar ausente das operações para apoiar os civis em
situação de fragilidade.
"Nunca escondemos que, quando integravam no Conselho de
Segurança, Brasil, Índia e África do Sul poderiam ter feito muito, muito mais
para cuidar das necessidades dos civis sírios", disse Bolodion.
"Agora que está fora do Conselho, o Brasil poderia ser
uma voz mais firme denunciando o apoio incondicionado da Rússia ao governo
sírio."
Durante o encontro do G20 - o grupo de 20 principais nações
industrializadas e emergentes - em São Petersburgo, na Rússia, na semana
passada, organizações pediram apoio político para a proposta de investigar os
abusos cometidos por governo e oposição sírios no âmbito do Tribunal Criminal
Internacional.
Onze dos vinte membros do grupo - incluindo o Brasil - não
haviam se manifestado sobre o tema.
Falando especificamente sobre a questão das armas químicas,
a presidente Dilma Rousseff afirmou que o governo brasileiro "repudia e
considera como crime hediondo qualquer uso" desses armamentos.
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