À primeira vista, as irmãs Gul pareciam ter tudo: elas eram jovens,
bonitas, bem educadas e bem de vida e testavam os limites das tradições
conservadoras afegãs com jeans justos, maquiagem e celulares.
Mas Nabila Gul, 17, uma brilhante e corajosa estudante do segundo grau,
foi longe demais. Ela se apaixonou.
Sua irmã mais velha, Fareba, 25, alarmada com a possível vergonha e as
consequências de Nabila buscar um jovem fora dos canais da família, tentou
intervir. A discussão entre as duas num dia de novembro terminou em luto:
caixões lado a lado, com ambas as meninas mortas poucas horas depois de
consumirem veneno de rato roubado da dispensa de grãos de seu pai.
Entrevistas com familiares e funcionários do governo e do hospital
revelam uma tragédia causada por erro de cálculo: sob a pressão da irmã mais
velha para parar de falar com o rapaz, Nabila tentou ingerir apenas veneno
suficiente para assustar sua família, mas não para se matar. Mas calculou mal.
Dominada pela culpa e pela tristeza, Fareba seguiu os passos da irmã e tirou a
própria vida na frente do templo mais sagrado da cidade.
A morte das irmãs destruiu a família e tocou num ponto nevrálgico para
os moradores de Mazar-i-Sharif, uma cidade cada vez mais marcada pelo desespero
de suas jovens. Para muitos, as mortes passaram a simbolizar uma crise maior:
uma onda de tentativas de suicídio que se intensifica.
Embora o governo diga que não coleta dados sobre esses casos, o
principal hospital da cidade diz que tem estado sobrecarregado, com três ou
quatro pacientes que dão entrada todos os dias --mais do que um ou dois que
chegavam por mês há uma década.
O número de tentativas cresceu com tal velocidade que o chefe de
investigações da polícia, o coronel Salahudin Sultan, diz que não consegue mais
acompanhá-las.
"Não temos tempo nem recursos para investigar esses casos",
explicou. "Caso contrário não conseguiríamos fazer mais nada."
Quanto às perguntas sobre o motivo --e o local-- parece haver tantas
teorias quanto número de casos. A maioria das explicações gira em torno do
perfil da cidade de Mazar no Afeganistão como um afluente centro multicultural,
relativamente mais liberal e exposto às influências europeias.
Enquanto as meninas afegãs são regularmente expostas às normas sociais
do ocidente através de séries de TV e da internet, o fato é que vivem numa
sociedade conservadora e machista do Afeganistão. O confronto é cruel, e pode
ser devastador.
"A maioria das meninas não morre, mas todas elas tomam veneno ou
pelo menos ameaçam se matar", diz Khowaja Noor Mohammad, chefe de medicina
interna no Hospital Regional Mazar-i-Sharif. "Esse é o seu grito de
socorro."
O médico que tentou salvar as irmãs Gul, Dr. Khaled, fez uma lista de
pacientes dos últimos dois meses. Enquanto se debruçava sobre a lista,
pronunciava o nome de várias mulheres jovens que tentaram suicídio: Fátima,
Mariam, Zulfiya, Zar Gul, Basbibi.
"Há provavelmente 200 casos aqui de tentativa de suicídio",
disse Khaled, que atende por um único nome, balançando a lista no ar. "Nas
últimas 12 horas, tivemos três."
Talvez nenhum caso seja mais emblemático --ou mais discutido-- do que as
mortes das irmãs Gul.
As duas vieram de uma família progressista, com boa escolaridade.
Mohammed Gul, o pai, é promotor. Nabila estava prestes a se formar no segundo
grau e planejava ir à faculdade na cidade. Fareba já estava na faculdade e
esperava seguir os passos de seu pai no Direito. As jovens eram decididamente
modernas, e não pareceriam fora de lugar em muitas cidades ocidentais.
Nabila era impetuosa, com um temperamento explosivo e uma personalidade
forte. Ela costumava desafiar o que Fareba dizia para ela, rejeitando a
deferência aos mais velhos na sociedade afegã. Fareba, uma mulher afetuosa que
costumava chorar depois de pequenas discussões, confidenciou a um amigo próximo
que sentia que Nabila não a respeitava.
Sua última briga, na manhã de 26 de novembro, envolveu um rapaz por quem
Nabila se dizia apaixonada. Fareba achava que o relacionamento não era
apropriado e pediu que a irmã o abandonasse. Nabila se recusou, e as duas
começaram a gritar.
Sua mãe ouviu a briga e correu para impedi-la, dando dois tapas no rosto
de Nabila por responder para sua irmã mais velha, de acordo com pessoas
próximas à família. A menina mais nova fugiu em lágrimas.
Uma hora mais tarde, a mãe de Nabila encontrou-a no chão de seu quarto,
com uma espuma branca escorrendo pelos cantos da boca.
No hospital, os médicos tentaram desesperadamente retirar o veneno de
rato do corpo da menina enquanto familiares cercavam a cama, implorando que
Nabila se recuperasse.
A mãe disparou um olhar de raiva a Fareba e disse: "Se Nabila
morrer, será sua culpa", de acordo com um médico que estava na sala no
momento.
Mohammed Gul ficou em silêncio, segurando a mão da filha. Ela perdia e
recobrava a consciência. Ela disse que não tinha a intenção de tomar muito
veneno e que estava arrependida.
Às 14h30, Nabila morreu. No caminho do hospital para casa, seu pai
sofreu um ataque cardíaco e deu entrada como paciente.
Na casa, as pessoas começaram a se reunir. O filho mais velho dos Guls,
Abdul Wahid, recebeu os convidados que se aglomeraram no salão verde claro da
casa. Mas ele estava preocupado com Fareba, a irmã de quem ele era mais
próximo. Ela não estava respondendo telefonemas nem mensagens de texto.
Às 16h, o telefone tocou. Era Fareba. Sua voz estava rouca e lenta, ela
disse que estava no templo Hazrat Ali, uma mesquita impressionante com telhas
azuis num mar de mármore branco. Preso na casa com os visitantes, Abdul Wahid
pediu a seu tio, Malim Faiz Mohammad, que a buscasse.
Quando ele chegou à mesquita, Mohammad viu uma multidão perto da entrada
para o templo. Ele encontrou sua sobrinha deitada sobre o mármore frio no
centro da multidão. Fios de espuma vazavam do canto de sua boca.
Ele a levou imediatamente ao hospital. Médicos colocaram Fareba numa
sala no mesmo corredor que seu pai, que ainda estava se recuperando. Nenhum dos
dois sabia que o outro estava lá.
Ninguém mais sabia do paradeiro de Fareba. Com a família preocupada em
preparar o corpo de Nabila para o enterro, o tio disse que decidiu guardar o
assunto para si mesmo, não querendo derrubar a família já frágil.
Os médicos trabalharam em Fareba por mais de uma hora. O tio ficou em
silêncio à medida que eles realizavam o mesmo procedimento que havia fracassado
em reanimar sua irmã horas antes. Às 17h30, os médicos pronunciaram a morte de
Fareba.
"Morrer dessa forma simplesmente não faz sentido", disse
Mohammad em uma entrevista. "Preferia que elas tivessem morrido num
acidente."
Ele levou o corpo de Fareba de volta para a casa, mas o escondeu numa
sala separada do lado de fora do complexo onde ninguém o veria. Ele ainda não
era capaz de lhes dar a notícia.
A verdade veio à tona no dia seguinte.
Na manhã seguinte, Mohammed Gul acordou no hospital. Ele se sentou por
um tempo na sala ensolarada, reunindo seus pertences, ainda incapaz de entender
a morte de Nabila. Ele precisava falar com Fareba sobre o que aconteceu,
pensou.
De volta para casa, ele foi escoltado para o pátio, onde caixões estavam
sentados lado a lado.
"Por que há dois caixões?", perguntou a seu irmão. "Quem
está no segundo?"
As irmãs estão enterradas em um cemitério comum a poucos quilômetros da
casa da família, com suas sepulturas marcadas com dois postes de madeira e um
monte de pedras. Um bando de crianças percorriam o cemitério, transformando as
pistas enlameadas em playground.
Mohammed Gul dificilmente se alimenta e sofre ataques contínuos da
doença. Sua mulher, devastada, raramente sai de sua casa fria de concreto.
Lembranças da perda brotam dos rituais cotidianos como se sentar à mesa da
cozinha, com duas cadeiras agora vazias.
Os pais procuram conforto em pequenas coisas. À noite, Gul e sua mulher
dormem no quarto das meninas, ele na cama de Fareba, ela na de Nabila. Eles
deram os pertences das irmãs, como é de costume, exceto dois vestidos. Em dias
ruins, os pais seguram as roupas contra seus rostos.
Reportagem de Azam
Ahmed
Tradutor: Eloise De Vylder
Foto: http://semvergonha.net/fotos-afeganistao-2011/
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