“Eu via no universo cristão uma leviandade com  relação à guerra
que teria deixado envergonhadas as próprias nações  bárbaras.
Por causas fúteis ou mesmo sem motivo
se corria às armas e,  quando já com elas às mãos,
não se observava mais respeito algum
para com  o direito divino nem para com o direito humano,
como se, pela força de um  édito,
o furor tivesse sido desencadeado sobre todos os  crimes”
Hugo Grotius, “O Direito da Guerra e da Paz”,  1625
Hugo Grotius (1583-1645), pai do direito internacional  moderno, foi herdeiro da tradição humanista e cosmopolita da filosofia estoica,  que formulou, pela primeira vez, a ideia de uma sociedade internacional  solidária e submetida a leis universais. Mesmo sendo cristão e teólogo, Grotius  desenvolveu a tese que estas leis universais faziam parte de um “direito natural  comum a todos os povos…tão imutável que não poderia ser mudado nem pelo próprio  Deus”. Para o jurista holandês, o direito à segurança e à paz faziam parte  destes direitos fundamentais dos homens e das nações.
Apesar disto, Grotius considerava que o recurso à  guerra também era um direito natural dos povos que viviam dentro de um sistema  internacional composto por múltiplos Estados, desde que que a guerra visasse  “assegurar a conservação da vida e do corpo e a aquisição das coisas úteis à  existência”. Mas Grotius não concebeu nem defendeu a possibilidade de uma guerra  que se propusesse como objetivo a defesa ou promoção internacional dos próprios  direitos humanos. Em parte, porque ele era católico, e conhecia a decisão do  Concílio de Constança (1414-1418), que fixara a doutrina da ilegitimidade da  “conversão forçada”, e de todo tipo de guerra visando a conversão de outros  povos, como tinha sido o caso das Cruzadas, nos séculos anteriores.  
Depois do Concílio de Constança, o conceito de “guerra  justa” ficou restrito – para os católicos, e para quase todos os europeus – às  guerras que respondessem a uma agressão, e que fossem caracterizadas como um ato  jurídico destinado a reconstituir o status quo ante. Grotius não  desenvolveu o argumento, mas pode-se deduzir que, do seu ponto de vista, os  direitos humanos são, como a fé religiosa, uma luta e uma conquista de cada  homem, e da cada povo em particular. 
Sobretudo, porque ele foi um dos primeiros a dar-se  conta que, num sistema internacional formado por múltiplos Estados, era  inevitável que coexistissem várias “inocências subjetivas”, frente a uma mesma  “justiça objetiva”. Não havendo forma de arbitrar – “objetivamente” – sobre a  razão ou legitimidade de uma guerra declarada entre dois povos que  reivindicassem uma interpretação diferente dos mesmos direitos fundamentais, dos  homens e das nações. Neste sentido, a própria ideia de uma guerra em nome dos  “direitos humanos” contém uma contradição conceitual, e é por isto que todas  elas acabam se transformando, inevitavelmente, numa “guerra de conversão”, ou  numa nova forma de Cruzada.
Em última instância, este também é o motivo pelo qual a  discussão sobre Direitos Humanos, no campo internacional, transformou-se, depois  do fim da Guerra Fria, num terreno cercado de boas intenções, mas minado pelo  oportunismo e pela hipocrisia. Porque existe, de fato, uma fronteira muito tênue  e imprecisa entre a defesa do princípio geral, como projeto e como utopia, e a  arrogância de alguns Estados e governos que se auto-atribuem o “direito natural”  de arbitrar e difundir, pela força, a tábua ocidental dos direitos  humanos.
Para compreender a complexidade e a fluidez desta fronteira, basta ler um  outro grande filósofo iluminista e cosmopolita, o alemão Immanuel Kant, dividido  entre a sua utopia de uma “paz perpétua”, e o seu desejo de converter o “gênero  humano” à “ética internacional civilizada”. Para Kant “no grau de cultura em que  ainda se encontra o gênero humano, a guerra é um meio inevitável para estender a  civilização, e só depois que a cultura tenha se desenvolvido [Deus sabe  quando...], será saudável e possível uma paz perpétua”. (“Começo verossímil da  história humana”, 1796)
Para ver, na prática, como se desenvolvem estas  “guerras kantianas”, basta observar o caso mais recente da intervenção na Líbia,  iniciada por um governo francês de direita e em estado de decomposição, seguido  por um governo inglês conservador e absolutamente inexpressivo e por um governo  norte-americano ameaçado por graves dificuldades internas. Tudo começou sob o  aplauso internacional de quase todos os defensores dos direitos humanos, de  direita e de esquerda, que consideravam se tratar de um caso indiscutível de  “guerra legítima”, feita em nome da defesa de uma população agredida e  desarmada. 
Mas já agora, depois de algumas semanas de morticínio,  de lado e lado, vai ficando cada vez mais claro que o que está em questão não é  o direito à vida e à liberdade dos líbios, nem tampouco a promoção de uma  democracia universal. Ao mesmo tempo, e na medida mesmo em que a guerra da Líbia  vai se transformando, de forma cada vez mais clara, num exercício militar  experimental de implantação de uma cabeça-de-ponte para uma intervenção futura,  eventual e mais ampla, das forças da OTAN na África.
Olhando de outro ângulo, pode-se observar uma  recorrência e uma dificuldade análoga, no debate e nas iniciativas dos  organismos internacionais, com relação à defesa e à promoção dos “direitos  fundamentais”, ao redor do mundo. O que se tem assistido, nos últimos anos, é  quase sempre o mesmo filme: de um lado, posicionam-se e votam os “inocentes  úteis” e os defensores generosos do princípio, do projeto e da utopia; e do  outro, os países que se utilizam do seu apoio e da sua mesma retórica, para  projetarem seu poder e sua estratégia geopolítica. Através de “guerras  humanitárias”. Promovidas ou lideradas invariavelmente pelos mesmos países que  compõem o atual “diretório ético e militar do mundo”, ou seja: EUA, Grã Bretanha  e França.
Por José Luís  Fiori (http://www.outraspalavras.net/2011/04/28/o-direito-humano-a-guerra/)
foto: palavrasquenaocessam.blogspot.com

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