16/06/2017

Perda de confiança em política cria vazio preenchido por consumismo, diz filósofo francês

Tido como um dos mais importantes pensadores do mundo atual, o francês Gilles Lipovetsky defende que a falta de confiança na política é uma das principais características da nossa época e que o consumo se transformou em uma espécie de engajamento.
"Há algo de estranho nessa sociedade em que tudo deve ser atrativo e a política não é mais atrativa: ela é repulsiva", disse ele em entrevista à BBC Brasil.
Autor de best-sellers como Era do Vazio O Império do Efêmero, em que reflete sobre a estrutura da sociedade em que vivemos, o professor da Universidade de Grenoble e teórico da "hipermodernidade" afirma que as pessoas se orientam hoje pelo consumo. Lipovetsky concentra seus estudos no período a partir da segunda metade do século 20.
"A direita, a esquerda, a igreja - são conceitos mais desfocados. E o sentimento geral das pessoas é de estarem um pouco desnorteadas. Mas justamente através do consumo as pessoas readquirem um certo poder porque disso elas entendem".
Elke esteve recentemente em Porto Alegre para participar do seminário Fronteiras do Pensamento. Veja abaixo, trechos da entrevista dada à BBC Brasil.
BBC Brasil - Sua obra fala muito do consumismo, das relações com o universo das marcas, que buscam nos seduzir, mas também nos representar. O que representa o consumo hoje para as pessoas?
Gilles Lipovetsky- Há as duas coisas. Há quem a gente chama de 'fashion addicts' (viciados em moda) que compram porque estão fascinados por esta ou aquela marca. Eles vão às lojas da Apple com se fossem templos, igrejas. São fanáticos. Mas há outra face também: há hoje quem, através do consumo, exerce alguma forma de engajamento pessoal. Por exemplo, "não compro produtos desta empresa porque não gosto da visão de mundo deles".
Acho que o consumo hoje em dia tomou um significado diferente do passado. As pessoas hoje estão perdidas no universo da globalização porque as referências tradicionais estão mortas: a direita, a esquerda, a igreja - são conceitos mais desfocados. E o sentimento geral das pessoas é de estarem um pouco desnorteadas. Mas justamente através do consumo as pessoas readquirem um certo poder porque disso elas entendem. Então, eu acho que se o consumo se tornou algo tão importante é porque de uma maneira elas exercem uma autonomia.
BBC Brasil - Seu livro mais recente lançado no Brasil fala sobre a leveza (Da Leveza - Rumo a uma Civilização sem Peso). O mundo em geral, no entanto, anda pesado - da política à economia. A leveza hoje seria mais uma evasão, utopia ou ainda é algo possível?
Lipovetsky - Desde o começo dos tempos, os momentos de leveza são de fato momentos de fuga, uma maneira de se desconectar. Então, por muito tempo, os homens descreviam leveza como um sonho, uma utopia.
Mas no livro que escrevi eu mostro que a questão da leveza mudou de status desde meados do século 20. A leveza não é mais apenas do imaginário: o mundo inteiro se reconstruiu através do princípio da leveza. Observe a evolução da tecnologia. No passado a potência era pesada: as grandes estradas de ferro, as usinas… hoje em dia as empresas que mais crescem como Google - não vendem nada. É tudo virtual. É a época da desmaterialização. É mais leve do que o leve. O virtual é hoje o vetor do crescimento. A leveza se tornou o princípio da realidade do mundo.
Um segundo aspecto: no corpo se vê a marca da revolução da leveza. Pense na evolução da medicina, veja a obsessão com a magreza e também a evolução do esporte: surf, windsurf, asa delta…
BBC Brasil - E o poder, especialmente o político? Há leveza nele ou ainda é um elemento "pesado" na nossa sociedade?
Lipovetsky - Sim, vou chegar nisso. De fato em relação à política há uma outra questão. Mas vou terminar (o ponto anterior) rapidamente porque há uma conexão…
O terceiro exemplo que me parece essencial. Já disse o primeiro - os objetos -, o segundo - o corpo -, e o terceiro é o capitalismo. Porque, o capitalismo moderno, a partir da revolução industrial do século 19, repousa sobre o peso. São os equipamentos de estrada de ferro, as grandes máquinas e ferramentas, tudo é pesado. Hoje estamos num capitalismo de sedução. Nós apenas celebramos os prazeres, o lazer, a distração. Por todos os lados vemos a lógica da fuga.
BBC Brasil - É o consumo "das experiências"...
Lipovetsky - As experiências de viagem, de prazer… Tudo isso é muito leve. São as promessas de felicidade. O que eu digo é que o capitalismo hoje em dia não é mais um capitalismo que é severo. Ele é severo para o trabalhador, mas não para o consumidor. É um sistema que funciona como a moda. Ele se baseia em coisas superficiais. Observe por exemplo os videogames, as séries de televisão…Tudo isso é extraordinariamente leve. Não há mensagem profunda, tudo é lúdico.
Agora, a questão é: todas as esferas obedecem este princípio de leveza? A política, ela tenta pegar esse bonde andando. Claramente, por exemplo, no desenvolvimento do marketing político. Antes, os políticos tinham aparência austera, em comícios, para fascinar as massas. Não temos mais políticos como antes. Eles aprendem a falar em cursos de comunicação, aprendem como ser legais, como agradar as pessoas. Fazem promessas sem parar.
BBC Brasil - Tentam ficar "leves" se distanciando da política, e se apresentando, por exemplo, como gestores?
Lipovetsky - Sim, exatamente. Mas aí é um aspecto interessante. O capitalismo de fato é bem sucedido em seduzir os consumidores. Eles adoram! Eles criticam, mas eles adoram! A política não é assim: quanto mais os políticos querem seduzir, menos conseguem fazê-lo.
Porque há hoje um imenso desapontamento dos cidadãos em relação à política, eles não confiam mais na classe política. A grande característica da nossa época é a perda da confiança na classe política. A política não é leve.
Todos os dias a gente vê na imprensa que pegaram dinheiro, que há corrupção… Então há algo de estranho nessa sociedade em que tudo deve ser atrativo e a política não é mais atrativa: ela é repulsiva.
BBC Brasil - Mas repulsiva no sentido de que as pessoas abandonaram o engajamento político e estão mais individualistas?
Lipovetsky - Sim, mas o individualismo não significa necessariamente um desengajamento. Observe as pessoas que se engajam em associações: há muitas, até mais do que antes. O que mudou é a maneira de se engajar.
Antes, o engajamento na vida política era um pouco como uma religião, e hoje em dia não é assim. As pessoas não querem sacrificar nada, mas isso não quer dizer que elas não tenham mais interesse pelos assuntos da política. Hoje em dia, as pessoas ouvem, refletem, mas no fim pensam "bom, vou fazer o que eu quiser". Isso é o individualismo, não é o egoísmo. É a autonomia das pessoas que não são mais controladas de uma maneira pesada pelos aparelhos.
Mas, ao mesmo tempo, vemos que os cidadãos se mobilizam quando há algo que eles julgam importantes, mas em ações mais pontuais, não mais em grandes ideologias gerais. Por exemplo, se você é ecologista, você vai se engajar neste campo, ou no campo do feminismo, do casamento gay, e as pessoas vão se engajar nestes temas. Antes era direita e esquerda, capitalismo ou socialismo. Nas grandes ideologias, as pessoas não acreditam muito mais. Elas querem coisas mais pragmáticas.
Então, isso criou um novo tipo de relação com a política e que, acho, deve nos levar a repensar os meios para melhorar o mundo. Porque se não é mais a política que tem a força de mudar o mundo, então o que seria? E eu acho que uma das grandes forças que deve fazê-lo é a educação.
BBC Brasil - Queria falar sobre a mídia e as "fake news", as notícias mentirosas. A grande mídia parece conviver com essas novidades, e também com formas independentes de jornalismo. Que papel tem a mídia na nossa sociedade hoje?
Lipovetsky - Fake news é um termo que entrou muito na moda este ano, mas não é nada novo. Desde o século 19 há denúncias de manipulação e notícias falsas na mídia. A novidade é que 'fake news' agora podem ser difundidas por órgãos de comunicação que não são como os jornais e a televisão. Normalmente isso passa pelas redes sociais. Então, não é (uma ação) centralizada.
Na minha opinião, há uma ameaça, com os novos meios de comunicação, de se minar a força da mídia tradicional. E acho que isso é perigoso. Acho que precisamos de mediadores.
BBC Brasil - Por quê?
Lipovetsky - É perigoso para aqueles que não têm as ferramentas se orientar nesse magma de informação. Se você é alguém com educação, se você consegue distinguir informações, não está perdido. Mas muita gente não tem isso. Nós precisamos de mediadores porque não somos especialistas em tudo e é por isso que eu acho que é preciso defender a imprensa e ter uma ambição maior nas escolas, na educação. Não haverá solução sem isso, você será manipulado.
A exigência absoluta de sociedades desenvolvidas do século 21 será a educação. E não se trata de lançar palavras ao vento! É necessário investir. É uma responsabilidade do Estado. E não se pode pagar salários miseráveis a professores - como frequentemente acontece na América Latina. Professores não são uma despesa inútil, são uma obrigação para que se faça uma sociedade digna.
BBC Brasil - Mas em uma sociedade com tanta desigualdade como a brasileira, essa realidade é ainda mais complicada, não?
Lipovetsky - As desigualdades não devem ser todas rejeitadas. Não se trata de demonizar as desigualdades, mas há desigualdades que são insuportáveis. É necessário que a desigualdade não arruíne o ideal democrático. Por exemplo, quando há apenas estabelecimentos de educação privados em condições de receber alunos enquanto outros não têm dinheiro para estudar, isso é muito grave. A desigualdade impede a democratização da sociedade porque tira a oportunidade de muita gente de se desenvolver.
Vocês têm um país muito rico. O Brasil é um continente em que há de tudo. E ao mesmo tempo, os resultados escolares aqui não são bons. Pegue como exemplo países pequenos como a Finlândia, a Dinamarca, Cingapura, a Coréia do Sul… o que eles têm como riqueza material? Nada.
São países que prosperam com nível de vida muito superior ao brasileiro, com resultados escolares excelentes, que têm mais capacidade de se adaptar à globalização, que são competitivos, que têm redes de proteção social. E não têm petróleo, não têm gás, não têm ouro… não têm nada! Eles têm a inteligência.
BBC Brasil - Mas eles não têm nossos índices de corrupção...
Lipovetsky - Exatamente. E muito menos corrupção.
BBC Brasil - Da forma como o senhor coloca, parece como se dois mundos coexistissem. Um tradicional, antigo, pesado. E outro leve, mais coletivo, mais fluido, inclusive em relação a identidades. É um momento de transição?
Lipovetsky - Eu acredito que é o prolongamento de algo que vai se perpetuar. Essa lógica é estrutural. Mas o que eu digo também no livro é que essa fluidez para os indivíduos acaba pesando. No livro eu mostro que não estamos no Nirvana. É o paradoxo: tudo é leve, mas você não está leve.
BBC Brasil - Pelo contrário, muita gente se cobra essa "leveza".
Lipovetsky - Sim, e não somos (leves). Então, isso nos deixa ansiosos. Porque eu não sou feliz? Bom, antes as tradições e as religiões davam as respostas. As pessoas não ficavam se interrogando. Neste mundo fluido as pessoas mudam de profissão quando querem, mas aí ficam ansiosas em relação ao futuro. Então, o mundo da leveza se tornou pesado para os indivíduos.
A fluidez é tão pesada para algumas pessoas que elas buscam soluções para escapar a este vazio. Dou um exemplo fácil de entender: o caso dos "jihadistas". São em geral jovens, nascidos na Europa - eles não vêm do Oriente Médio, são nascidos na França ou na Inglaterra. Eles escutaram rock, viram séries americanas, usavam jeans, iam a boates.
Eles conheceram esta vida leve, mas não encontraram seu lugar nela. E, em geral, têm uma imagem deles mesmos muito deteriorada. Em resumo: eles não amam as próprias vidas e estão em conflito interior. E é esta ansiedade em relação a eles mesmos que os faz buscar causas absolutas porque isso lhes devolve a dignidade. Isso lhes dá um peso pessoal, os ancora.
Então aí, você vê o paradoxo da leveza que se transforma em seu contrário. No terrorismo, na violência terrível em que se atemoriza toda uma população. E isso eu não acho que seja transitório. Acho que vai continuar.

Reportagem de Néli Pereira
fonte:http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40268389#orb-banner
foto:http://paraalemdocerebro.blogspot.com.br/2012/05/nao-confunda-consumismo-com-qualidade.html

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