“Um dia eu vou te matar.
Pode passar 10, 15 anos, mas eu ainda vou te matar”. Durante mais de uma
década, a professora T. C., de 39 anos, viveu sofrendo violência física e verbal e ameaças como essa do ex-marido. “Ele também me
chutava e agredia, mas a maior agressão sempre foi a
violência psicológica e a
perseguição”, conta. As agressões tiveram início em 2005, quando o filho do
casal nasceu e eles iniciaram os processos para adotar uma segunda criança. “Ele
[o ex-marido] começou a beber e foi ficando cada vez mais violento”, conta T.,
que suportou calada as agressões até concluído o processo de adoção da filha,
em 2009. Assim que isso aconteceu, ela se separou do marido. E aí, passou a ser
perseguida e as agressões de casa extrapolaram para as ruas e até o ambiente de
trabalho. “Ele vinha na minha escola, armado”, conta. “Me ameaçava no telefone,
batendo o revólver no telefone para eu escutar, ia atrás de mim em todos os
lugares onde eu estava”.
Foi somente em 2011 que
T. criou coragem para ir até uma delegacia e prestar queixa contra toda a
violência que vinha sofrendo. Moradora de Boa Vista, capital de Roraima, ela
buscou então a delegacia da mulher da cidade. Chegando lá, virou outra
estatística: a das mulheres, vítimas de violência, e mal atendidas mesmo no
local que deveria ser especializado nesse tipo de crime. “Na delegacia da
mulher me perguntaram o que eu tinha feito para gerar aquele comportamento
nele”, conta. “Você é culpado pela atitude do outro como se você tivesse provocado aquela
situação”. De lá para cá, ela diz ter registrado mais de 15 boletins de
ocorrência contra o ex-marido por violência e ameaças.
O caso da professora,
que conversou com a reportagem por telefone sob anonimato, é um dos 31
utilizados para ilustrar o triste cenário traçado pelo relatório “Um
dia vou te matar”: impunidade em casos de violência doméstica no Estado de Roraima, lançado nesta quarta-feira
pela ONG Human Rights Watch.
Segundo o levantamento, Roraima é o
Estado com as maiores taxas de homicídio de mulheres no Brasil, registrando um
aumento de 139% entre 2010 e 2015. Há dois anos, a taxa chegou a 11,4
homicídios para cada 100.000 mulheres em Roraima. A média nacional é de 4,4, o
que, segundo a ONG, já é uma das mais elevadas do mundo.
O relatório aponta
“falhas em todas as fases de resposta do Estado à violência doméstica” como um
dos fatores responsáveis pelo crescente registro de agressões contra a mulher
ali. Na prática, isso significa, por exemplo, falta de preparo no atendimento
das vítimas, ausência de delegacias da mulher que funcionem 24 horas, falta de
locais de acolhimento das vítimas. Segundo a organização, dos 8.400 boletins de
ocorrência de violência doméstica acumulados em Boa Vista, a Polícia Civil não
conduziu a investigação de nenhum caso. Muitos são arquivados e os crimes
acabam prescrevendo. A Polícia Civil, por meio de nota, informou que as mulheres
são acolhidas nas delegacias e que por isso, "têm perdido o medo de
denunciar". E que todas as unidades policiais são preparadas para receber
vítimas de violência doméstica e prestar o apoio necessário, mas não comentou a
falta de investigação dos casos.
O caso da professora é o
retrato fiel da realidade do Estado. Nos últimos anos, o recurso da ameaça foi
a campeã de queixas dentre os Boletins de Ocorrência registrados em Roraima,
segundo dados fornecidos à reportagem pelo Governo. Em segundo lugar, aparece
lesão corporal. No ano passado, 4.833 boletins de violência doméstica foram
registrados na capital. Neste ano, já são 499.
Jeane Xaud, defensora
pública estadual do juizado de violência doméstica, aponta algumas
características do Estado que podem ser agravantes deste cenário. “Uma
peculiaridade nossa é ser rota de tráfico internacional de drogas e de
mulheres”, diz. “Trata-se de um território enorme, mas com pouca ocupação, o
que torna as fronteiras vulneráveis. Além de ser um Estado pequeno, com pouco aparato
estrutural”. Com uma população de pouco menos de 500.000 habitantes, Roraima é
o Estado menos populoso do país.
"Além disso",
segue a defensora pública, "temos muito problema com alcoolismo e com o
vício na pasta da cocaína", diz. "Um volume expressivo de agressores
com quem trabalhamos tem algum problema de drogadição ou alcoolismo".
Apesar de todas as peculiaridades, a defensora alerta que faltam dados
qualitativos que apontem se de fato a violência aumentou no Estado, ou se as
mulheres estão procurando mais pelas delegacias.
Ochenta
Jeane Xaud alerta que a chegada de imigrantes venezuelanas
ao Brasil por meio da fronteira com Roraima pode aumentar ainda mais a vulnerabilidade
das mulheres naquele Estado. “Vamos vivenciar uma nova era dessa violência com
a questão da migração das venezuelanas. Muitas mulheres estão indo para a
prostituição”, diz. “Mulheres, meninas e indígenas. Ou seja, é a vulnerabilidade
dentro da vulnerabilidade”. Para ela, a "violência invisível", essa
que pode estar sendo praticada com as mulheres imigrantes e indígenas e que não
são registradas nas delegacias, são ainda mais preocupantes. “Aqui, as
venezuelanas que foram para a prostituição têm até apelido: são chamadas de ochenta(oitenta,
em espanhol), porque elas cobram 80 reais pelo programa”, conta. “Isso deve
impactar negativamente nesses números. Não tenho um olhar muito positivo”.
Pensando nos altos
índices de violência contra a mulher em todo o país, a então presidenta Dilma
Rousseff criou em 2013, por meio da hoje extinta Secretaria de Políticas para
as Mulheres, a Casa da Mulher Brasileira. O local, que deveria existir em todos
os Estados, serviria para acolhimento, apoio psicossocial,
delegacia 24 horas, defensoria pública e alojamento, dentre outras funções. A
unidade de Boa Vista foi prometida para ser inaugurada em meados do ano
passado. Mas, embora a cidade tenha uma prefeita mulher - Teresa Surita (PMDB)
administra a cidade pela quinta vez - e o Estado tenha uma governadora - Suely
Campos (PP) - a Casa da Mulher Brasileira não foi inaugurada até hoje.
A defensora Jeane Xaud,
que também faz parte do grupo gestor da Casa, afirma que falta dedicação para
que o local seja inaugurado. "É um desprestígio do projeto", diz. Até
o momento, quatro unidades foram abertas em todo o país. A de Boa Vista, que
começou a ser construída em 2015, seria a primeira inaugurada da região norte.
Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública de Roraima diz que a Casa da
Mulher Brasileira, quando inaugurada, será "importante instrumento"
no enfrentamento à violência doméstica, e afirma que a nova previsão de
inauguração é julho deste ano.
O Governo estadual
afirma que a Ronda Maria da Penha - um serviço com duas viaturas e 20 policiais
que atuam "exclusivamente" no atendimento de casos de violência
doméstica em Boa Vista - é outro programa utilizado neste enfrentamento. Em
2015, foram registrados 6.370 ocorrências de violência contra a mulher na
capital. No ano passado, foram 5.401, redução que o Governo atribui à Ronda
Maria da Penha. Segundo as autoridades, todos os policiais que atuam na Ronda
recebem capacitação específica.
Reportagem de Marina Rossi
foto:http://www.animalpolitico.com/blogueros-salir-de-dudas/2014/12/16/como-se-cuentan-feminicidios-en-mexico/
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