Apesar de alguns países, inclusive o
Brasil, terem a ideia de que sua soberania é inviolável, não existe um país que
consiga hoje, em nome desta soberania, cultivar o isolamento. "Um
país isolado é um país desarmado", afirma o jurista português José
Joaquim Gomes Canotilho (foto acima).
Ele cita como exemplo países que, mesmo
sem ter os direitos humanos garantidos em suas constituições, cedem à pressão
de outros países para garantir esses direitos. "Incluímos as causas
dos direitos humanos para tentar pressionar esses países para acabar com o
sacrifício dos direitos dumanos. Nós devemos ter políticas globais
pressionantes relativamente a essas questões", explicou, em entrevista à
revista Consultor
Jurídico.
Na conversa, Canotilho falou sobre a possibilidade de uma
Constituição Global e as mudanças nas relações de trabalho. No entendimento do
jurista, se por um lado a busca pela estabilidade garantiu o direito do
trabalhador, por outro, excluiu o direito ao trabalho de milhares de jovens.
Citando o caso de Portugal como exemplo, Canotilho afirmou que é
preciso ter política que proteja os jovens. "O Direito do Trabalho é
diferente do direito ao trabalho", afirmou J. J. Canotilho, lembrando
que hoje, em Portugal, há mais de 300 mil jovens bem qualificados que não
conseguem emprego no país.
J.J. Canotilho esteve no Brasil na
última semana para participar do 14º Congresso Nacional de Direito do Trabalho
e Processual do Trabalho do Tritunal Regional do Trabalho da 15ª Região.
Diante de uma plateia que lotou o Theatro Municipal de Paulínia,
Canotilho falou sobre a relação entre Constituição e Direito do Trabalho e
contou parte dos problemas sofridos com a crise econômica mundial.
Em sua exposição, Canotilho lembrou que a Constituição está
diretamente ligada aos trabalhistas. "O que está na Constituição não
são os mínimos existenciais, são direitos dos trabalhadores, são direitos
sociais e não mínimos sociais", afirmou. Segundo ele, as normas constitucionais
são os direitos dos trabalhadores.
Leia abaixo a entrevista:
ConJur — O senhor fala na possibilidade
de uma Constituição Global, um Direito supranacional com uma espécie de mínimo
constitucional como os direitos humanos. O senhor acha possível essa
Constituição Mundial?
J.J. Canotilho — Não defendo propriamente uma ideia de
Constituição Global. Os modelos que hoje estão em discussão são vários. Um que
é o modelo de autores como [Jürgen] Habermas e outros que acreditam que pode
haver uma Constituição Global a partir das Nações Unidas construindo
progressivamente órgãos judiciários, órgãos de poder que permitam desenvolver a
nível global um constitucionalismo que cumpra as funções para que nasceram as
constituições. Ou seja, garantir-nos contra ditaduras, escravaturas, ter
poderes eficazes para castigar isso e ter poderes positivamente diretivos. O
que tem sido dirigido contra Habermas e contra essas pessoas é que isto é uma
fantasmagoria, é uma nova utopia, que não tem possibilidades de convencer o
mundo há uma Constituição Global.
ConJur — Qual é o outro modelo?
J.J. Canotilho — O outro, que tem uma perspectiva
diferente, que é o chamado Constitucionalismo Societário, diz que nós
precisamos é de um constitucionalismo sem política, tendo em conta os vários
temas mundiais: o sistema de saúde mundial, a organização mundial do comércio,
a ala desportiva, como vê aqui no Brasil quem manda é a Fifa e não o governo.
Dizer, quer queira quer não, que as constituições tenderão a serem substituidas
por constituições civis globais parciais baseadas nos vários sistemas. Como
pode ver, este é um desafio muito mais grave a um constitucionalista, porque as
constituições foram um acoplamento da política e do Direito. Só que política e
Direito estavam relacionados com o Estado. Num mundo sem confins, cada vez é
mais difícil o constitucionalismo estatal. Um constitucionalismo político
global também tem suas fraquezas, e está a tentar impor-se um
constitucionalismo que não tem política ou não quer ter política e que
coincidiria com os vários subsistemas sociais.
ConJur — Quais as críticas que o senhor faz
a esse modelo?
J.J. Canotilho — A crítica que eu tenho dirigida a esta
proposta é que isso transporta, mesmo que eles não queiram, política. Um
criança quando nasce, nasce num hospital, num sistema. Depois passa para uma
creche ou uma escola, já é outro subsistema. Depois pode estar em uma
universidade e ou curso técnico, o que significa que não há subsistemas puros
isentos da política. Essa é uma das discussões que nós temos nos tempos atuais.
Eu hoje, tento ter uma visão mais realista. Um cidadão isolado é um cidadão
desarmado. Um país isolado é um país desarmado. Mesmo que seja um país como o
Brasil, que insiste em sua soberania, mas o Brasil está com os outros e não
pode ser um país que em busca de sua soberania cultive o isolamento. Os EUA
está fazendo um coro com a União Europeia, porque sentem que não podem estar
sozinhos no mundo. Por exemplo, o Parlamento Europeu, no âmbito da Organização
Mundial do Comércio, passou a exigir de países que compravam produtos da
Colômbia, Indonésia, Bangladesh, que exigisse uma cláusula de direitos humanos.
Porque na Colômbia se matam os sindicalistas, a Indonésia tem crianças fazendo
produtos da moda, as bolas de futebol que vão rolar aqui. De uma forma
importante o Parlamento Europeu disse assim: esses contratos só poderão ser
firmados depois de os senhores introduzirem no Direito interno tudo o que está
nos tratados internacionais de direitos humanos e nós vamos fiscalizar. Em vez
de ser apenas uma questão de equilíbrio dos fatores de produção como nos EUA
fazia. No fundo incluímos as causas dos direitos humanos para tentar pressionar
esses países para acabar com o sacrifício dos direitos humanos. A ideia que nós
devemos ter não é uma ideia totalmente negativa, mas nós devemos ter políticas
globais pressionantes relativamente a essas questões.
ConJur — A Constituição consegue garantir
direitos perante uma crise econômica? Como ficam os direitos sociais e
fundamentais diante das crises? O Direito Constitucional sucumbe?
J.J. Canotilho — O que eu tenho dito é que a Constituição
está a ser vista de uma forma anônima, discreta, pelos entendimentos do Fundo
Monetário Internacional com agências, de certo modo a constituição está entre
parênteses. Ela própria não foi revogada, mas ao seu lado criou-se uma outra
constituição que é a Constituição da União Europeia, e que Portugal está
vinculado. Entendimento que autoriza reduções de pensões, entre outros. É o que
eu disse, a Constituição dirigente sozinha não é ela própria um instrumento de
transformação, mas por outro lado é uma Constituição que pode ter aquilo que eu
chamo de uma dimensão metanarrativa emancipatória, mas pura e simplesmente
utópica e sem força real. Mas no cotidiano, na luta cotidiana, é importante
termos constituições que elevam esses direitos a direitos humanos, a direitos
fundamentais e que proclamam a indivisibilidade entre direitos irrevogáveis e
garantias e direitos econômicos e culturais. Eu penso que isso não é mal mas
que devemos ser realistas das possibilidades dos dirigentes e das
constituições.
ConJur — O jurista italiano Luigi Ferrajoli, em
palestra recente aqui, no Brasil disse que a Constituição Brasileira é uma das
mais avançadas do mundo por efetivar direitos de cidadania. O senhor concorda
com isso?
J.J. Canotilho — Ora, no fundo isso relaciona as
condições do garantismo defendidas por Ferrajoli, e no livro que estou
escrevendo Direito
Constitucional no século XXI — o livro tem muito de Ferrajoli. Eu acho que não devemos
desarmar relativamente a grandes questões como o direito dos trabalhadores, os
direitos sociais, a sua indivisibilidade, essa é a grande questão, que é
garantir os direitos econômicos e culturais e não de neutraliza-los ou de
adotarmos uma atitude dizendo que somos rigorosos em relação aos direitos dos
trabalhadores e os direitos econômicos mas de eles não tem subjetividade, que
são direitos muito custosos, muito caros e que temos que responder isso. Mas
tem também isso que as constituições como essa que alicerçam expectativas que
os estados não estão em condições de satisfazer. Por exemplo o pleno emprego. O
pleno emprego em Portugal ou na Europa, não tem como dar pleno emprego. Em
Portugal você tem hoje 300 mil jovens altamente qualificados que estão
desempregados, ou no Brasil, ou em Angola, estão em toda parte menos em Portugal;
ou seja, hoje você tem as caravelas de volta aos seus antigos países. São
jovens altamente qualificados, não é o operador de enxada, mas seus filhos ou
netos altamente qualificados, e isso é uma tragédia porque gastamos dinheiro
com eles e não temos meninos porque são jovens de alta produtora e que não
estão casados, não tem crianças e um país desse, em termos estratégicos, é um
país que corre sérios riscos. Esse é o caso de Portugal, mas não só de
Portugal. É uma sociedade que não tem mais meninos e esses países estão mais
perto da morte que da própria vida. Ora, temos que ter políticas de proteção do
jovem, da família, de natalidade em termos civilizado.
ConJur — Em seu livro, o senhor
analisa a Constituição Brasileira. O senhor acredita que ela deveria ser
reduzida?
J.J. Canotilho — Isso é um falso problema. Muitas vezes é um falso problema. Esse
argumento tem sido levantado em relação a constituição portuguesa. Um exemplo
que eu dou é da leitura de uma revista, daDer Spiegel, que há
dois ou três anos trazia em um artigo sobre top produtividade mundial e tinha
três empresas portuguesas. Eram as empresas top confrontadas com outras em todo
mundo. Com a mesma constituição, com as mesmas leis do trabalho, com a
aceitação por parte dos trabalhadores, em momentos delicados por exemplo: os
senhores, os sindicalistas, tem Direito do Trabalho para todos, uns trabalham
um ou dois dias por semana, outros em outros, por turnos. E isso implicava em
um impacto social e produtividade; não se perguntava se tinha algum problema na
Constituição para resolver algum problema, ou seja, há sempre possibilidades
através da organização onde estão de se ter produtividade e ter consenso e
compromisso das duas partes: das empresas que precisam produzir e ter
competitividade mundial e por parte dos trabalhadores porque é racional, é
razoável e é aquilo que a empresa está a proporcionar. Então se eles querem
vender automóveis, então colocam turnos para os empregados em que trabalham uns
dias uns e outro dia outros. Não é nada impossível, mas é preciso fazer isso. E
por exemplo, hoje, mesmo que isso seja considerado utópico e eu já propus isso
a alguns empresários, sindicalistas e organizações — mas nenhuma se manifestou
ainda sobre o assunto — mas eu disse que não era mal que se visse porque entra
um trabalhador e saem dois. É preciso fazer contas? Porque o que isso significa
em termos de taxas sociais? Mas isso era capaz de ser melhor para as famílias,
não teria que ter auxilio desemprego, e o empregado poderia se organizar melhor
e não teríamos o estigma do desempregado. E por outro lado teríamos também o
fim da questão do desemprego. Claro que tem outros pontos, não seria
propriamente uma solução, mas por outro lado não teríamos uma mancha tão grave
de desemprego como temos agora.
ConJur — O senhor fala em uma certa
flexibilização da Justiça Trabalhista. Qual a sua opinião sobre terceirização?
J.J. Canotilho — A terceirização hoje é uma realidade,
quer nas estruturas do Estado, quer nas estruturas privadas. Quando eu era
vice-reitor da Universidade de Coimbra tinham as cantinas, as creches, as casas
de estudante. Hoje a maior parte das universidades já não tem esses serviços
sociais, tem serviços terceirizados, os hospitais tem serviços terceirizados
como segurança, limpeza. É uma tendência para melhor organização.
ConJur — E o senhor acha que é um tema que o
Supremo deveria estar julgando, ou isso seria uma interferência indevida do
Judiciário?
J.J. Canotilho — Não sei, não conheço o enquadramento que
está aqui. Mas é uma realidade como é uma realidade em outros aspectos. Por
exemplo, eu fui convidado a dar um parecer, que eu ainda não dei e ainda não
sei bem como vou dar. Um advogado me procurou e me disse assim: Olha, nós
queremos saber se nós podemos ter escritórios de advogados multidimensionais,
multifuncionais. O tipo de cliente que nos aparece quer isto tratado com as
chaves na mão — problemas econômicos, problemas financeiros, problemas
laborais, problemas de contabilidade, tratem tudo. Aquilo é juntar advogados,
contabilistas, economistas, num mesmo escritório possivelmente com códigos
deontológicos diferentes. O cliente que nos procura é este. "Não quero ter
problemas, vocês me entregam o serviço como se fosse uma casa com as chaves na
mão". Eu ainda não dei esse parecer, ainda não sei, porque os códigos
deontológicos vão chocar-se. Agora, há uma tendência em termos de gestão e de
organização para esse esquema de trabalho, de terceirização. E que obriga uma
recomposição dos macrocosmos profissionais. Não é fácil passar por essa total
reorganização, mas está em cima da mesa.
Reportagem de Tadeu Rover
foto:http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/11/1375636-os-reus-do-mensalao-tem-alguma-razao-diz-jurista-guru-dos-ministros-do-stf.shtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita e pelo comentário!