Artigo de Antonio Martins, editor do site Outras Palavras
Para começo de conversa é graffiti! Grafite é aquele bastão fininho que tem dentro do lápis que serve para escrever. Mas graffiti também é escrita. Escrita inscrita nas paredes da cidade. É cor, linguagem, textura, arte, intervenção, protesto, provocação.
A história, as lendas e a
Wikipédia dizem que o graffiti deriva lá do Império Romano, onde os muros eram
utilizados como um dos suportes de diálogo com a esfera pública. Cristo foi
crucificado, Maria Antonieta perdeu a cabeça, o muro de Berlim foi derrubado, a
Hebe quase morreu e o Corinthians foi para a Libertadores, e o graffiti
continua sendo intervenção, arte e denúncia urbana.
Generalizou-se pelo mundo a
partir de maio de 1968, quando, no contexto de revolução política e cultural,
os muros de Paris foram tomados por inscrições de caráter poético-político.
Tornou-se popular e adquiriu forma nas ruas de Nova York. No Brasil, mais
fortemente em São Paulo, surgiu na década de 1970. Primeiro através das
pichações poéticas e depois com a stencil art (com reprodução seriada). Já nos
anos 90, o graffiti ampliou sua presença para as periferias no rastro do
movimento hip-hop.
Hoje, está incorporado de tal
forma na vida urbana que já faz parte da identidade das cidades. Em São Paulo,
todo dia 27 de março, saúda-se o dia do graffiti (não oficializado
nacionalmente). A data é celebrada desde 1988, em homenagem a Alex Vallauri, um
dos pioneiros da arte de rua no país. O grafiteiro, pintor, artista gráfico,
desenhista, cenógrafo e gravador nasceu na Etiópia, mas adotou o Brasil. Criou
personagens célebres reproduzidos em stencil por toda a Paulicéia. Quem não se
lembra da enigmática botinha preta de couro?
De tanto percorrer a cidade, a botinha perdeu seu solado, foi engolida por
uma bocona vermelha que dizia ah! beija-me, passeou com o Cão
Fila, visitou
o TAKI 183 e acabou indo para a mesa com a Rainha
do Frango Assado.
As histórias dos graffitis se entrelaçam, se recriam. Numa paleta de cores,
assumem novas formas e matizes. Os muros são o suporte, a morada de todos esses
grafismos, ícones, histórias e memórias de uma metrópole. O graffiti é assim.
Nasce da necessidade de passar uma mensagem. Caminha em cores por ruas cinzas.
Provoca o olhar para a cidade. Em cada símbolo, torna os muros sociais
visíveis. É poético. É ácido. É metáfora. É antítese.
Embora autoral, o graffiti é
arte intrinsecamente democrática. O desenho fica exposto a toda população sem
distinção ou restrição – basta olhar a cidade. A efemeridade lhe insere um
sentido de desprendimento. A noção de posse da obra é eliminada. “O graffiti
mantém um diálogo muito rico entre os transeuntes e o poder público. Levanta
questões sobre de quem é a cidade. Resgata o verdadeiro conceito de público”,
explica a grafiteira Ziza de São Paulo.
É sempre muito curioso como as
pessoas se relacionam com as imagens. O graffiti ocupa o espaço e interage o
tempo inteiro. Desde pautar olhares transgressores e reflexivos até
situações engraçadas. Quem nunca, por exemplo, ao indicar um caminho, disse
“olha só! pega a primeira esquerda e vira na quarta a direita, na rua onde tem
um graffiti bem colorido na esquina”. Ou ficou surpreso ao se deparar com a
frase o amor é importante, porra! Ou ainda viu estremecer os
pilares da sociedade racista ao ver o graffiti do recorrente saci, com as mãos
para o alto, ao lado da inscrição quem ter orgulho de sernegro levanta a mão! E ficou chocado ao ver que, na
realidade, um policial apontava uma arma em direção a esse mesmo saci.
“Toda a cultura hip-hop,
incluindo o graffiti, é ato resistente numa cidade que sonega direito, sonega a
voz. Ela ocupa, traz visibilidade, dá voz. Além disso, o graffiti tem um papel
de revitalização – dá vida ao que não tem cor”, diz Paulo Carrano, professor da
Faculdade Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Observatório
Jovem do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, o graffiti
humaniza e transforma o espaço urbano. Embeleza, ao mesmo tempo em que defronta
a cidade e suas contradições, obrigando-a a contemplar sua própria miséria.
Projeta imagens dialéticas. Reflete outro lado da organização social da
metrópole. Em cada mensagem, a denúncia pelo direito à cidade – o direito
fundamental à dignidade dentro desse mosaico social.
O grafiteiro e artista plástico
Zezão, por exemplo, procura sempre locações vazias, abandonadas, com
backgrounds deteriorados. É conhecido mundialmente por seus graffitis azuis nas
galerias subterrâneas. Ele dá cor aos intestinos e vísceras de São Paulo.
“Enxergo minha arte como um
curativo da cidade. Esse é o sentido do graffiti para mim. Levar arte para as
pessoas que habitam os rincões esquecidos da metrópole. É quase um exorcismo do
lugar”, contou.
No Rio de Janeiro, vários
coletivos de graffiti, dentre eles o Comando da Selva, se reuniam para decorar
o morro. As casas das comunidades cariocas ganhavam cor, desenho, textura e
vida num ambiente de desigualdade aparente – fratura exposta da sociedade. “A
ação era toda esquematizada pelo fotolog e nos encontrávamos no dia combinado.
Mas antes mobilizávamos os moradores. A ideia era sempre promover os mutirões
envolvendo a comunidade para se criar a noção de pertencimento do graffiti”,
lembra Muleka, grafiteira do coletivo.
Para Mateus Subverso, do
coletivo Suatitude (Sindicato Urbano de Atitude), de São Paulo, o graffiti
assume um papel chave na externalização da cultura periférica. “Ao ocupar a
cidade, ele volta o olhar para a quebrada. Existem os muros invisíveis e os que
são bem visíveis – onde está dito, aqui você não entra. O graffiti é a quebra
desses muros”.
Ao falar de graffiti, não se
pode esquecer sua origem: a rua. Arte transgressora e proibida, contracultura,
cultura da periferia. Se, na maioria das vezes, é associado ao movimento
hip-hop, não é à toa.
O hip-hop como palavra da
periferia, o grafite como expressão gráfica desta palavra. Considerado as artes
plásticas do hip-hop, o graffiti possui grande potencialidade de comunicação da
quebrada. ”O graffiti pode ser encarado como uma mídia (pintura) e o muro como
suporte (veículo). É por meio dele, do break, da poesia do MC e da musicalidade
do DJ que a periferia pode espraiar sua mensagem”, enfatiza Mateus.
Fruto da necessidade de
afirmação, resgata a identidade e valorização da comunidade. Os desenhos, as
tags (assinaturas tanto do graffiti quanto da pichação) sempre fazem
referências à quebrada. “Temos de entender porque vários jovens começam a
escrever nos espaços públicos. Para mim faz parte da construção da identidade.
O boom das
tags, por exemplo, expressa a elaboração dessa identidade pelo seu local. A tag
conter o local da comunidade é muito significativo. É a construção pelo
coletivo. Estamos sempre nos vendo e vendo o nosso coletivo”, continua Mateus.
Com grande apelo dentre os
jovens, a arte dos muros é, inclusive, mobilização social. Para Satão, do
coletivo DF Zulu, de Ceilândia, em Brasília, o graffiti traz uma ideologia para
transformação social da comunidade. “Ensina a pensar; ensina que o pensamento
vale à pena. É uma cultura que dá alternativas!”.
Existem centenas de projetos
sociais que utilizam o graffiti como forma de inclusão, geração de renda,
educação e cidadania. Em Brasília, a associação e coletivo DF-Zulu, na ativa há
21 anos, trabalha para a transformação social da comunidade. São mais de 80
jovens envolvidos nas oficinas de break, DJ e graffiti. “O DF-Zulu surgiu em 1989.
Dos trabalhos que promovíamos, nasceu o coletivo os3s (Satão, Sowto, Supla). Fomos um
dos primeiros grupos de graffiti de Brasília. E a partir de 1993, começamos a
trabalhar nas ruas e becos da Ceilândia. A ideia sempre foi trabalhar a
transformação nos jovens”, explica Satão.
Em São Paulo, destacam-se o
Projeto Quixote, ONG vinculada a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Interlagos, a ONG
Escola Aprendiz, Rede Ivoz e a Ação Educativa. Todas mantêm iniciativas ligadas
ao graffiti como transformação social.
Dentro ou fora da escola, a
maioria dos coletivos de graffiti desenvolve ações educativas. Seja na educação
formal ou não-formal, os grupos procuram criar cotidianamente novos meios e espaços
para se debater a arte de rua em sua cultura.
Muitas escolas, sobretudo
públicas, oferecem oficinas de graffiti para os alunos. A associação DF-Zulu,
por exemplo, trabalha com a revitalização dos muros da escola por meio de
atividades de graffiti com os alunos. “A escola faz parte da comunidade, e
promover a revitalização gera um retorno a valorização deste espaço. Procuramos
transformar a escola em um ambiente que os jovens se sintam bem e empoderados
do espaço de aprendizagem. No final, é uma valorização da própria comunidade”,
pondera Satão.
Para Guilherme Marin, da Rede
IVoz, a escola é um espaço de convivência de alto valor simbólico na
comunidade. O graffiti, em sua capacidade de envolver o jovem, devolve o
lúdico, a identidade e o respeito à comunidade. “Hoje, a maioria das escolas
parecem verdadeiros presídios, perdendo o valor simbólico. A revitalização
causa identidade no jovem. O fato do graffiti ser usado em sala de aula devolve
e demonstra valor pelo conhecimento gerido pela comunidade. É a valorização da
cultura periférica – criada na comunidade”, explica.
Porém, o uso do graffiti como
instrumento pedagógico pode ser perigoso, se desvinculado de sua origem e
história. O coordenador do Observatório Jovem do Rio de Janeiro, Paulo Carrano,
argumenta que dependendo da abordagem em sala de aula, corre-se o risco de
descontextualização da cultura hip-hop em que o graffiti está inserido. “O
graffiti é um mosaico de ações e sentidos; tem origem e contexto. Se usado na
escola, não deve distanciar-se de sua origem”.
“O professor tem que ser um
desbravador, levar os alunos à rua, ver o real, observar cores, técnicas,
superfícies. Chega de criar ambientes de reprodução”, completa a grafiteira
Ziza.
O educador é, muitas vezes,
referência para os alunos. Ele inquieta, provoca, cria verdades. Carrano
defende que as mensagens colocadas em sala de aula nunca devem ser impostas,
mas negociadas. Os debates e atividades em torno do graffiti devem contemplar e
valorizar a sua origem – cultura periférica. Uma cultura altiva, consciente de
sua condição social e do quanto lhe foi negado.
fonte: http://outraspalavras.net/uncategorized/graffiti-arte-de-rua-poesia-protesto/
foto:http://blog.estudiodurer.com.br/?tag=grafite
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