Artigo de Otávio Luiz Rodrigues Júnior, advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil
(USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no
Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht
(Hamburgo).
O Partido Conservador britânico, que governa o país em coalização com
o Partido Liberal-Democrata, anunciou em sua última convenção nacional
que, caso vença as próximas eleições, vai propor a revogação do Human Rights Act 1988 e denunciar a Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Esse
impactante anúncio foi feito por Theresa May, ministra do Interior do
Reino Unido, para quem o modelo dual de proteção dos direitos
fundamentais, que conjuga o Poder Judiciário britânico e a Corte
Europeia de Direitos Humanos, está inviabilizando a segurança dos
súditos de Sua Majestade, abrindo frestas perigosas no sistema
antiterrorismo e desmoralizando as decisões da jurisdição interna. O
ministro da Justiça
Chris Grayling corroborou as declarações de
sua colega de gabinete e informou que será elaborado um calendário para a
reforma dessa legislação, o que resultará na publicação, em 2014, de um
documento-base para ser utilizado, caso os conservadores ganhem as
eleições gerais, no segundo mandato do primeiro-ministro David Cameron.
Segundo
as autoridades ministeriais britânicas, há dezenas de milhares de
pedidos de extradição e deportação de presos que se fundamentam na
Convenção Europeia de Direitos Humanos e que, em última análise,
paralisam a ação das forças policiais e de segurança, além de impedir o
envio de parte desses custodiados para outros países, como a Jordânia,
sob o argumento de que não seriam observadas as necessárias garantias
judiciais desses extraditandos.[1]
O Human Rights Act
é uma lei aprovada pelo Parlamento do Reino Unido e sancionada pela
rainha Elizabeth II em novembro de 1998, que entrou em vigor no ano de
2000. A instituição dessa lei de direitos fundamentais integrou um
pacote de reformas políticas e jurídicas do Partido Trabalhista, de
entre as quais a criação da Suprema Corte e o esvaziamento das funções
jurisdicionais da House of Lords. Além disso, a lei de 1998
permitiu o Reino Unido se ajustasse às exigências da União Europeia, por
efeito de sua ratificação da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Com isso, os tribunais locais passaram a contar com uma regra de
natureza estatutária, objetiva, genérica e uniforme, para decidir as
questões ligadas ao tema dos “direitos humanos” (que, no continente, são
mais comumente estudados sob a rubrica de “direitos fundamentais”), sem
necessidade de um reenvio permanente ao tribunal europeu homólogo.[2]
Em termos resumidos, o Human Rights Act 1998 estabelece quanto à eficácia de suas normas, os seguintes princípios:[3]
1.
A vinculação dos tribunais britânicos, independentemente de sua
competência ou de seu nível hierárquico, às normas da Convenção Europeia
de Direitos Humanos. Desse modo, os órgãos judiciários locais devem
examinar se a lei britânica é conforme ou não aos preceitos do tratado
europeu. Se não houver conformidade, a Corte britânica declará-la e
suscitar a mudança legislativa, por meio de um procedimento sumário.
Esses novos poderes dos juízes do Reino Unido instauraram um debate
sobre se o país havia finalmente ingressado na era do controle
concentrado de matriz continental. Em se cuidando de um sistema tão
peculiar como o existente nas Ilhas, por si só, essa já seria uma
questão interessantíssima.
2. Outra determinação do estatuto
britânico de direitos humanos é a vinculação a suas normas por
autoridades administrativas, nos diversos níveis de poder estatal. Nessa
regra de eficácia dos direitos humanos, contudo, não se inclui o
Parlamento.
3. A interpretação das normas jurídicas pelos
tribunais britânicos deve-se pautar pelo catálogo de direitos
fundamentais da convenção europeia.
O Human Rights Act
tem sido objeto de duras críticas do Partido Conservador, de setores da
mídia e de juízes. Os argumentos contra a lei são de três ordens: a) ela
permitiu o aumento da interferência judiciária em detrimento da
histórica preeminência do Poder Legislativo; b) sua interpretação
enfraqueceu a ação policial de combate ao crime e ao terrorismo; c) a
lei diminuiu sensivelmente a soberania britânica, além de dar margem
para um controle dual da legislação interna. Quanto a essa última
censura, há certo consenso nos meios jurídicos do Reino Unido quanto à
(aparente) inferioridade técnica dos órgãos judiciais europeus,
especialmente a Corte Europeia de Direitos Humanos, em relação a seus
homólogos britânicos. Essa crítica relaciona-se ao modo de escolha dos
juízes da corte europeia, muitos deles sem a experiência e a formação
que um magistrado britânico possuiria.
Na academia, no meio
político e na mídia, reconhece-se a transposição para as Ilhas
Britânicas de um debate tipicamente europeu (e bem brasileiro, diga-se)
sobre a judicialização da vida, o que era algo impensável em termos de
sistema de common Law. Em relação a isso, tem-se, ainda, o
problema do enfraquecimento da doutrina dos precedentes, a base do
sistema inglês e galês há séculos, que se vê em contraste com “normas
estatutárias” (rectius, legais, em uma tradução forçada do conceito de statute law),
cuja supremacia é sustentada pela rigidez do modelo continental, algo
revelador de outra violência contra as tradições do modelo adotado nas
ilhas.
O estopim para as declarações das mais elevadas autoridades
do Governo britânico, na convenção do Partido Conservador, foram
decisões da Suprema Corte do Reino Unido e da Corte Europeia de Direitos
Humanos, que interferiu em decisões administrativas de extradição de
prisioneiros, supostamente implicados em delitos de terrorismo, para o
Reino Hachemita da Jordânia. Os serviços secretos e a polícia real da
Jordânia são conhecidos como os mais eficientes do Oriente Médio, após
seus equivalentes do Estado de Israel, e mantém estreita cooperação com o
Reino Unido e com os Estados Unidos da América. O envio de custodiados
do sistema prisional britânico para a Jordânia tem sido objetado sob o
argumento de que essa transferência é apenas uma forma de permitir que
esses indivíduos possam ser submetidos a interrogatórios, digamos, mais
“severos”, o que seria impossível sob as leis britânicas ou
norte-americanas. Essas alegações são fortemente refutadas pelas
autoridades dos três países referidos.
Uma das alternativas propostas pelos conservadores é a adoção de um Bill of Rights inteiramente britânico, em substituição ao excessivamente europeu Human Rights Act.
O
resultado dessa disputa só será conhecido após as eleições gerais
britânicas e se houver a manutenção dos conservadores no poder, hoje
mantidos sob uma frágil aliança com os liberais-democratas. A liderança
de David Cameron não é tão inspiradora e o partido se divide entre
setores mais à direita e aqueles que, como o atual primeiro-ministro,
defendem um “conservadorismo compassivo”.
Por trás das cortinas,
além do que se revela no palco político, há um inegável desejo de grande
parte dos britânicos de preservar o quanto possível as peculiaridades
de seu sistema jurídico, que tanto surpreende, quanto encanta os
estudiosos de Direito Comparado de todas as épocas.
[1] Notícia divulgada na imprensa britânica: http://www.theguardian.com/law/2013/sep/30/conservitives-scrap-human-rights-act. Acesso em 22-10-2013.
[2]
Não se desconhecem as diferenças sutis entre “direitos humanos” e
“direitos fundamentais”. O uso desses dois termos neste texto não
obedece a essa distinção, que é necessária, mas à linguagem britânica
que prefere human rights a fundamental rights, expressão mais ao gosto do Direito continental.
[3] O inteiro teor dessa lei está disponível aqu: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1998/42/contents. Acesso em 22-10-2013.
fonte:http://www.conjur.com.br/2013-out-23/direito-comparado-partido-britancio-fim-lei-direitos-humanso
foto:http://www.portaleducacao.com.br/direito/artigos/9223/violacoes-de-direitos-humanos-lei-e-memoria-coletiva#!1

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