14/09/2016

"É preciso desativar a paranoia", diz filósofo sobre avanço da intolerância



Em setembro, Rumo entrevistou professores da Unisinos de diversos cursos para refletir sobre alguns dos males mais longevos da humanidade: as intolerâncias, discriminações e preconceitos, sobretudo as que recaem sobre as chamadas minorias -- populações historicamente mais vulneráveis a violências e ao desrespeito aos direitos humanos.

Alfredo Culleton, um dos entrevistados da reportagem especial (leia aqui), coordenador da pós-graduação em Filosofia da Unisinos, sugere outra abordadem: falar de tolerância, em especial da tolerância ativa.

-- Tolerância ativa é a que vai ao encontro do outro para encontrar nele um valor -- explica Culleton.

Para o filósofo, uma das formas de se promover a tolerância são as "ações afirmativas", para além das cotas, porque desativam os processos de desativação da paranoia.


-- Quando leio Borges ou ouço Charly Garcia, me aproximo do argentino, e já não o identifico como um sujeito arrogante, mas como um sujeito culto, que produz literatura boa, bom rock -- exemplifica Culleton, ele próprio um argentino que veio para Porto Alegre na década de 1990 cursar o mestrado em Filosofia.

Na entrevista a seguir, Culleton fala sobre caminhos para um mundo mais tolerante e sobre os papeis sublimes que o ódio pode desempenhar em uma sociedade: na arte e no esporte.

A alteridade, a relação que se estabelece entre o eu e o outro, pela qual o "eu" se constitui, foi um problema que sempre inquietou filósofos? Uma sociedade intolerante é uma sociedade que falha no exercício da alteridade?
Alteridade não é um conceito tão antigo, é trazido para o mundo acadêmico no século 20. Alteridade é reconhecer no outro um outro absolutamente outro, e como eu me reconheço diante do outro. Eu reconhecer no outro uma outridade que me faz me reconhecer como gente. Se contrapõe a uma ideia de que o único critério seria o eu com relação a todo resto. 

Sobre intolerância, se fala muito nisso, há uma mídia muito grande em cima do tema. Eu insistiria no tema da tolerância, não como um conceito de algo que tenho que suportar, ou um outro que tenho de aguentar, mas um conceito de tolerância contemporâneo, a tolerância ativa. É um tema vinculado à alteridade.


Tolerância ativa é a que vai ao encontro do outro para encontrar nele um valor. Se digo estou tolerando o diferente, mas isolo, não falo com ele, isso não é tolerância, isso é ser indiferente. 
A intolerância, hoje, se apresenta como a resposta a uma ameaça. O outro me resulta uma ameaça, então eu tenho de reagir, e reajo sendo intolerante, querendo eliminá-lo do meu universo. Os outros me ameaçam ou vejo eles como ameaça. Mas deixar de ser intolerante não é uma decisão que se toma simplesmente. Se eu não mudar, e conseguir tirar a perspectiva de ameaça que o diferente provoca em mim, vou seguir intolerante. Vou sofisticar minha intolerância, terceirizar minha intolerância, deixar que a política, pagar para outro fazer algo por mim, mas não vou deixar de ser intolerante. Vou deixar de ser intolerante quando encontrar valores no diferente. Por exemplo, falando sobre um imigrante. Que valor poderia encontrar no imigrante? Poderia prestar atenção na culinária, na música, na arte. Em coisas que me aproximem ao diferente. Se eu não tenho como me aproximar, esse diferente me ameaça.

Quer dizer: o mundo é globalizado, mas não nos aproxima.
A globalização não aproxima por si. Toda a globalização, o quanto nos aproximou da África? Zero. Que literatura árabe conhecemos? Africana? Quase nenhuma. A globalização não aproxima por si. É por isso que as ações afirmativas são tão importantes no projeto de desativação da paranoia. Ações afirmativas não são só cotas para a universidade. As prefeituras em Caxias do Sul tem promovido a semana da cultura haitiana? Não. Seriam políticas afirmativas. Se você é intolerante com o haitiano, tem de conhecer o haitiano, a cultura haitiana, a comida haitiana.

Ao mesmo temo, cada vez mais o mundo tende a nos colocar em contato com a diferença: sejam os imigrantes, seja a população crescente de idosos.
E isso é tão bom, um mundo cheio de coisas diferentes, levanta de manhã e não sabe o que vai encontrar. Pode ser uma coisa muito boa. Você ter infinitas possibilidades de interação, de descobertas, com gente com condições diferentes, modos de se socializar diferente. São aspectos importantes que essa diversidade nos dá. E a tolerância vai otimizar essas oportunidades. Não tenho de tolerar porque o outro tem direito, mas tolerar ativamente, porque é bom para mim. 

O fato de vivermos em um mundo competitivo, com concorrência crescente por recursos, tende a acirrar a intolerância?
A concorrência acontece em alguns âmbitos, mas em outros não. Onde está em risco a sobrevivência, se concorre um pouco mais. Mas do contrário, acredito que muito mais do que por uma questão de concorrência, a gente rejeita por uma questão de medo. Inclusive, para o mercado, essa diversidade é boa. Você vai a Nova York, a Paris, a Londres, encontra tanta cultura, tanta gente diferente. É muito melhor botar um negócio e ganhar dinheiro em um lugar desses do que ganhar dinheiro em Farroupilha. A diversidade, dentro do capitalismo, é uma oportunidade de negócio. 

Outro debate presente é o do discurso de ódio versus opinião. Por que manifestar o ódio se tornou algo tão presente?
O ódio é uma coisa natural. Qualquer humano tem ódio. Ninguém vai deixar de odiar porque decidimos que não deve. Agora, o que agente faz com esse ódio? Racha lenha, luta contra o vírus HIV? Odeio discriminação, então vai lutar contra a discriminação, olha que lugar bom para odiar. Se você não tem o que fazer com esse ódio, vai odiar o vizinho, o primeiro que cruzar na frente, o colorado, o gremista. O ódio tem uma função importante na sociedade, do ponto de vista mais propositivo, que tem de ser usada de maneira adequada. Mas é preciso falar sobre o ódio, externalizá-lo de maneira sublime, na arte, no cinema, nos concertos -- a música às vezes é uma disputa entre o violinos e os sopros, por exemplo. Essa disputa, essa luta que se dá na arte. Se você não encaminha seu ódio para o lado propositivo, vai acabar odiando cachorros, gatos, gremistas, colorados, petistas. Há uma cultura do ódio porque há uma falta de espaço nobre para o ódio. 

Uma sociedade com muito ódio sendo proferido de uns contra os outros está carente de espaços para o ódio ser sublimado?
Exatamente, de canais adequados para o exercício do ódio.


Onde se regra o ódio na escola? Tem esportes, um espaço em que a gente conflita, luta contra o adversário. Mas tem horário para começar, para terminar, tem regras, certo e errado. Terminou, os adversários se abraçam. 
Quando você vê a luta de judô, você está odiando, ninguém luta querendo o outro. Mas acabou, acabou. Quando mais esporte, menos ódio. Quanto mais arte, menos ódio. E essa é uma reserva que o ser humano tem para momentos limite, uma guerra, uma invasão, uma injustiça grave, uma ameaça real. Momentos em que a pessoa tem de agir violentamente.


fonte:http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/caderno-rumo/pagina/odio-medo-e-intolerancia/
foto:http://oraculo-decassandra.rhcloud.com/tag/intolerancia/

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