04/05/2015

Para lidar com drogas e crime, tribos indígenas da América do Norte adotam justiça tradicional

No Canadá e nos EUA, comunidades têm abandonado sistema judicial do Estado e aplicado próprias noções de justiça com foco em reintegração e pacificação; banimento de infratores também é uma opção, mas pode ser revertido.

Totem indígena do Canadá


Na reserva indígena canadense Blood Tribe [Tribo de Sangue, em tradução livre], a polícia da nação Kainai entrou numa casa do vilarejo Standoff no dia 20 de março e encontrou seus moradores, um casal, mortos por overdose do narcótico conhecido como Oxy 80, uma pílula falsa de oxicodona.
Naquele mesmo dia, num outro caso, duas pessoas foram encontradas inconscientes e levadas às pressas para o hospital, onde receberam tratamento para overdose. Três membros da comunidade foram presos e acusados de tráfico de drogas e negligência resultando em morte em conexão com esses casos.
Oxy 80 é um narcótico que contém fentanil, um analgésico altamente viciante usado no controle de dores crônicas e como anestésico. Seus efeitos são muitas vezes comparados com os da heroína, e ele é descrito como ainda mais potente que a morfina.
"As mortes foram causadas por fentanil", afirma Rick Tailfeathers, diretor de comunicação da tribo. "[Essa substância] está por toda a província de Alberta. Tivemos centenas de mortes nos últimos seis meses. Vinte e cinco delas foram aqui na reserva. Isso é desproporcional. Temos uma população de 12 mil pessoas dentro das 4 milhões em Alberta."
Tailfeathers diz que o conselho da tribo está observando outros fatores que possam ter contribuído para essa tendência, além de trabalhar na forma tradicional do seu povo para proteger a comunidade.
"Temos a opção de expulsar as pessoas da nossa reserva através de uma resolução do conselho", diz ele. "Qualquer pessoa problemática pode ser levada diante do conselho, e eles votam. Já foi feito antes. É uma opção."
"Antigamente, expulsávamos pessoas que lesavam a tribo", conta Tailfeathers. "Somos uma comunidade unida. A expulsão é algo difícil, porque há parentes que não querem que a pessoa vá."
Ele contou que os Hell's Angels controlam o tráfico de drogas na região e dividem as drogas entre pequenas gangues dentro das reservas, que as vendem para o motoclube reconhecido pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos como uma organização criminosa.
"É possível ganhar muito dinheiro, especialmente nas reservas que sofrem com o desemprego e têm pessoas dentro do programa de assistência social", afirmou. "É fácil adquirir drogas aqui, é só descer a rua. Os Hell's Angels sabem que é um mercado lucrativo."
A comunidade de Tailfeathers considera as drogas como um sintoma de um problema maior. "Estamos procurando as causas", afirma. "A pobreza precisa ser levada em consideração, é preciso encontrar uma oportunidade para um futuro mais saudável."
A expulsão é a medida extrema que tem sido tomada por um número cada vez maior de tribos no Canadá e nos EUA para proteger as comunidades e seus futuros, uma resposta ao crescimento do abuso de drogas e álcool e da violência. Ser expulso pode significar a perda de benefícios em saúde, habitação e educação; a perda dos direitos indígenas a pesca, caça e sepultamento. Também pode significar ficar sem teto.
No ano passado, no vilarejo Tanana, da tribo indígena Athabascan, no Alaska, a comunidade de 250 pessoas expulsou dois homens que ameaçavam membros da tribo e contribuíram para as mortes de dois policiais estaduais.
Localizado às margens do rio Yukon, Tanana era um ponto comercial até um século atrás. Agora, como uma comunidade permanente, possui escola, clínica e lojas, mas não há conexão com a estrada e nenhum corpo de segurança pública sob sua administração. Os policiais estaduais precisam ser levados por via aérea e, às vezes, leva dias para chegarem.
Arvin Kangas, um membro da comunidade de 58 anos, entrou dirigindo na cidade e apontou uma arma para um agente de segurança pública desarmado no dia 30 de abril de 2014. Os policiais estaduais foram chamados e dois deles foram enviados para Tanana no dia seguinte. Durante a tentativa de prenderem Kangas, seu filho Nathaniel atirou e matou ambos.
O vilarejo votou a favor da expulsão de Kangas e de outra pessoa que tinha agredido trabalhadores da tribo. Enquanto os policiais estaduais procuram apoiar as expulsões de forma não-oficial, a proteção da paz é, tradicionalmente, tarefa dos conselhos.
Dez anos atrás, em Bellingham, Washington, os três mil membros que viviam na reserva da nação indígena Lummi tomaram a decisão de expulsar um membro cuja família estava envolvida com álcool e drogas de maneira prejudicial ao resto da comunidade. Diversos membros de sua família foram presos por traficarem, uma decisão que a comunidade tomou em centenas de outros casos em meio ao seu esforço para manter os meios tradicionais e pacíficos de resolução.
O chefe da polícia do povo Lumni, Ralph Long, explicou que a nação possui um júri com membros da comunidade que ouvem os casos e decidem se a expulsão é necessária.
"Se quiser voltar, o infrator deve fazer tratamento, terapia para controle de raiva, prestar algumas horas de serviço comunitário, ter um mentor mais velho e não cometer nenhuma outra infração", explica Long.
Dependendo do caso, eles também precisam pedir desculpas publicamente para toda a comunidade.
O infrator tem cinco anos para realizar as metas mencionadas e, então, ele ou ela envia a documentação provando o seu cumprimento, e um júri de cidadãos também ouvirá seu testemunho antes de decidir se é o suficiente.
"Muitas das condições estabelecidas são de responsabilidade do infrator", diz Long. "É para aqueles que querem. Algumas pessoas querem voltar. Por isso há os critérios. Aqueles que não querem se esforçar, não voltarão."
"Cada tribo lida com essas questões de acordo com os seus costumes", diz Ray Ramirez, diretor de comunicações do Fundo para os Direitos do Indígena Americano (NARF, na sigla em inglês), em Boulder, Colorado.
No artigo “Fortalecendo a soberania tribal pela pacificação: como a tradição legal anglo-americana destrói as sociedades indígenas”, o advogado Robert Porter, da tribo Seneca, explica:
“As nações indígenas estão perdendo a soberania, isto é, a capacidade de determinar por elas próprias o seu futuro e sobreviver como um povo, porque perderam ou estão perdendo suas habilidades inerentes de resolverem as disputas que surgem dentro delas. A maioria das comunidades indígenas contemporâneas depende, agora, de sistemas jurídicos formais para resolver disputas em seus territórios, modelados com base no sistema legal anglo-americano."
O projeto do NARF chamado Iniciativa de Pacificação Indígena apoia os esforços das tribos em resgatar velhos costumes em lugar de lidarem com tribunais e prisões.
"É muito mais efetivo do que colocar alguém diante de um juiz ou atrás das grades", disse Ramirez.
Baseada na restauração das relações em vez de lidar com uma hierarquia de punições, a iniciativa aproxima através dos valores do respeito e da cura coletiva o infrator, a vítima e outras pessoas afetadas.
“Uma infração afeta, na verdade, muita gente”, explica Ramirez. “Afeta as famílias tanto do infrator quanto da vítima. Em alguns casos, toda a comunidade é afetada, então reunimos todas as famílias e, às vezes, os anciãos. Eles reúnem-se para estabelecer uma solução de forma a garantir que o problema não aconteça mais.”
O NARF facilita a recriação da antiga roda usada na justiça reparadora, onde um espaço seguro garante que todos possam ser ouvidos, que as pessoas falem diretamente umas com as outras e que o consenso molde a comunidade.
Reservas que possuem seus próprios tribunais tribais também têm incorporado a justiça tradicional no processo. Os mil membros da tribo Coquille, no estado do Oregon, nos EUA, responderam aos problemas modernos usando suas tradições em 2005, quando incorporaram a resolução dos pacificadores em seu sistema judiciário.
Os pacificadores são escolhidos dentre aqueles que a comunidade respeita e confia com o objetivo de manter o espírito de honra aos valores tribais, promovendo cura. Quando há uma prisão, o tribunal os designará para resolver as disputas de uma forma que integre a vítima e o infrator de volta à comunidade.
As reuniões são confidenciais. Advogados podem participar da roda de pacificação e os pacificadores encaminham um relato ao tribunal tribal. Eles podem testemunhar no tribunal se os participantes assim o permitirem.
Os pacificadores envolvem todos que sentem que foram afetados num espaço seguro, onde eles têm permissão de expressar suas emoções, desde a raiva e o medo até o luto. O foco está no bem estar de todos, de uma forma que o sistema judiciário do Estado norte-americano não permitiria.
Quando um jovem se envolve com drogas, o tribunal tribal pode oferecer enviá-lo para um programa de reabilitação e ajudar na garantia de oportunidades de emprego quando o programa terminar. Se, no entanto, a pessoa não quiser ajuda, será expulsa.
As tribos também podem expulsar pessoas temporariamente, oferecendo a um transgressor a chance de mudar e de ser recebido de volta. As soluções podem incluir, por exemplo, levar menores de idade que estão perturbando a paz para o meio da floresta junto com pessoas mais velhas que os ensinam como seu povo sobrevivia antigamente junto à terra.
“Em troca, eles estão aprendendo sobre a sua cultura, sobre o respeito à terra e, uma vez que compreendem isso, vem o respeito às pessoas”, acredita Ramirez.

Reportagem de Christine Graef | Mint Press News | Minneapolis
Tradução de Jessica Grant
fonte:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/40289/para+lidar+com+drogas+e+crime+tribos+indigenas+da+america+do+norte+adotam+justica+tradicional.shtml
foto:http://www.portalentretextos.com.br/colunas/recontando-estorias-do-dominio-publico-f-b/a-carta-de-1854-do-cacique-seattle-ao-presidente-dos-estados-unidos-da-america,236,3237.html

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