Projetos de lei no Congresso e em Buenos Aires classificam o assédio sexual verbal em espaços públicos como violência de gênero e preveem campanhas de conscientização sobre o problema: 'objetivo é desencadear mudança cultural'.
Três projetos de lei, um apresentado no Congresso argentino e dois na Legislatura de Buenos Aires, buscam punir – e, principalmente, prevenir – o assédio sexual verbal praticado nas ruas. Conhecido em espanhol como "piropo", esta é uma prática difundida e naturalizada de violência de gênero com a qual sofrem cotidianamente milhares de mulheres, principalmente adolescentes e jovens, em espaços públicos.
Com algumas diferenças, as iniciativas argentinas coincidem na proposta de realizar campanhas de conscientização sobre o problema e preveem sanções que vão de multas a dez dias de prestação de serviços comunitários ou até mesmo prisão para os que praticarem o delito. Um dos projetos, da deputada municipal Gabriela Alegre, da coalizão de centroesquerda Frente para a Vitória, estabelece um ponto-chave: que a Polícia Metropolitana elabore um protocolo de atuação para evitar que os agentes desestimulem as denúncias.
"Cremos que é dever do Estado contribuir para a sensibilização e conscientização sobre uma prática que ofende e gera medo e humilhação em suas vítimas. Tratam-se de situações que podem produzir consequências traumáticas nas pessoas que as sofrem e que não devem ser minimizadas, apesar de já estarem instaladas como algo comum em nossa sociedade", afirmou Alegre.
"O objetivo da iniciativa é dar um pontapé inicial que desencadeie uma mudança cultural, implicando que uma mulher não seja tratada como um objeto. Nós, mulheres, temos soberania sobre nossos corpos", declarou a deputada Victoria Donda, que, junto com o deputado Humberto Tumini, ambos do partido de centroesquerda Movimento Livres do Sul, é autora do projeto que chegou à Câmara de Deputados argentina e que modifica o Código Penal para punir o assédio sexual praticado nas ruas com uma multa de 100 a 7.000 pesos [entre 34 e 2.400 reais].
Na Legislatura de Buenos Aires, além de Gabriela Alegre, o legislador Pablo Ferreyra, do coletivo Sejamos Livres, também elaborou um projeto para prevenir e punir esta conduta. Os dois vinculam o assédio nas ruas com a perseguição, definida no artigo 52 do Código de Contravenções Penais. Alegre o enquadra como um agravante; Ferreyra, como uma variante da contravenção. Apesar desta diferença, as iniciativas se complementam.
As propostas, tanto no Congresso como na Legislatura de Buenos Aires, foram apresentadas nos últimos dias após Aixa Rizzo, estudante universitária de 20 anos que vive no bairro de Caballito, na capital argentina, tornar público por meio de um vídeo do YouTube o assédio que sofreu por parte de vários operários que trabalhavam em uma obra a poucos metros de sua casa. O caso teve ampla repercussão nos meios de comunicação argentinos. Aixa denunciou o fato à Justiça, e assim lhe concederam, por alguns dias, uma custódia policial. Ao retirá-la, deram a ela um dispositivo “antipânico”, conectado à central da Polícia Metropolitana. Na semana passada ela voltou a ser perseguida pelo grupo de homens e o dispositivo não funcionou, tendo que pedir novamente custódia policial.
Organizações argentinas que vêm batalhando para trazer a público os comentários sexualmente explícitos como uma forma de violência machista celebraram os projetos. "O que me parece mais destacável é que se começa a passar da ideia de um gracejo a uma conduta que deve ser enquadrada. É um passo muito importante para que deixemos de viver o assédio de rua como algo natural, para além do debate que certamente ocorrerá sobre o tipo de punição a ser aplicada. As leis têm uma carga simbólica fundamental. Por isso é importante que esses projetos sejam aprovados, para que as mulheres se sintam mais tranquilas na rua", disse Natasha Urman, ativista do coletivo Acción Respeto [“Ação Respeito”].
Há um ano, a AR trouxe para a mídia o debate sobre o problema do assédio sexual nas ruas, por meio de uma campanha que consistia em cartazes espalhados por várias cidades com as frases que tipicamente atingem, de maneira ameaçadora, os ouvidos de tantas mulheres enquanto transitam pela via pública, como: "Mamãe, se te pego eu te faço outro filho", "Vem, morena, que a gente te estupra", "Gordinha, faço de tudo com você, menos te carregar" ou "Que bundinha, meu amor", entre outras do mesmo estilo. O slogan era: "Se você se sente incomodado ao ler isto, imagine escutá-lo, todos os dias, sempre que sai à rua".
O coletivo agora está recolhendo assinaturas em prol dos projetos. Começaram na Semana Internacional contra o Assédio de Rua, que ocorreu entre 13 e 19 de abril. As integrantes da Acción Respeto estão surpresas pela boa recepção do tema. "Há um ano, os comentários que recebíamos eram muito negativos. Muita gente ria da questão, tirava sarro. Este ano, observamos que a atitude diante da nossa causa mudou muito. As pessoas se aproximam por curiosidade e se interessam. Ainda assim, há alguns que dizem que estamos exagerando e nos questionam, mas conseguimos colocar o tema com muita força", destacou Natasha.
O projeto proposto no Congresso do país define o assédio sexual em espaços públicos como "toda conduta ou ação, física ou verbal, com conotação sexual e não desejada, realizada por uma ou mais pessoas contra toda mulher ou pessoa que se autoperceba como mulher [sic], em lugares ou espaços públicos, ou de acesso público, que de maneira direta ou indireta afetem e/ou perturbem sua vida, dignidade, liberdade, integridade física e/ou psicológica e/ou livre trânsito, gerando intimidação, hostilidade, degradação, humilhação e/ou um ambiente ofensivo nos espaços públicos, sempre e quando a situação não configurar um delito mais severamente punível".
Verónica Lemi, ideóloga da campanha da Acción Respeto, destacou que o projeto "se propõe, na realidade, como medida de emergência ante uma situação que saiu do controle e que só poderá ser modificada realmente com educação, razão pela qual está muito focado no trabalho de conscientização por parte do Estado para a modificação dos aspectos culturais que permitem este tipo de agressão".
O projeto de lei estabelece como penalidade multas de 100 a 7.000 pesos [entre 34 e 2.400 reais], que serão destinadas ao Conselho Nacional da Mulher para a realização de campanhas, tanto em espaços públicos como privados de uso público, escolas e locais de trabalho. Um dos pontos mais interessantes é o que estabelece a inclusão da temática no currículo escolar, justamente com a finalidade de prevenir e gerar consciência entre os mais jovens a respeito da questão.
Além disso, ordena "que se exponha o artigo que fixa as multas em todos os espaços nos quais a lei se aplica, que não estão limitados à rua, mas incluem também os lugares de uso público". Também define uma semana nacional de luta contra o assédio sexual de rua, durante a qual o Estado se verá obrigado a realizar atividades e promover a conscientização da população. Nesse sentido, "é um projeto sólido que contempla a problemática como algo cultural que deve ser modificado a partir de frentes distintas e coloca um marco de ação para isso", sublinhou Lemi.
Lemi também destacou as iniciativas dos legisladores portenhos. "Nosso projeto – diz Gabriela Alegre – busca que a Cidade se comprometa com a luta pela desnaturalização dessa violência e torne visível o assédio de rua como um problema de que sofrem majoritariamente as mulheres jovens, mas do qual não estão isentas pessoas de qualquer gênero ou orientação sexual".
A deputada explica que o Código de Contravenções Penais já contempla uma descrição para o crime de assédio de rua, que é "perseguição, maus tratos e intimidação" (art. 52). "O que propomos é que a sanção deva ser agravada quando a conduta tenha conotação sexual. O Código já prevê agravante à pena quando a vítima de perseguição é menor de 18 anos e quando a contravenção é cometida por duas ou mais pessoas", diz. Desta forma, o assédio seria punido com dois a dez dias de serviços comunitários, multa de 400 a 2.000 pesos ou dois a dez dias de prisão.
A iniciativa de Alegre propõe que o Estado realize, de maneira permanente, campanhas de difusão e sensibilização, que elabore e distribua material sobre as características do assédio sexual em lugares públicos e os meios para denúncia. Além disso, planeja o desenvolvimento de oficinas, jornadas e outras ações pertinentes para a abordagem da problemática no âmbito educativo.
"Ao mesmo tempo, tendo em conta as dificuldades com que têm de lidar as vítimas no momento da realização das denúncias por assédio de rua, encomendamos à Polícia Metropolitana o desenvolvimento de um protocolo de atuação diante das denúncias que respeite a normativa local, nacional e internacional de proteção dos direitos humanos", assinala a deputada. Este aspecto do projeto é, para Lemi, fundamental para evitar que as denúncias sejam desestimuladas. Aixa Rizzo contou que foi difícil convencer os policiais da delegacia a que recorreu a aceitarem a denúncia.
A proposta do deputado Ferreyra apresenta uma enumeração das distintas condutas por meio das quais o assédio de rua pode se manifestar: olhares lascivos, assovios, beijos, buzinas, ofegação e outros ruídos; gestos obscenos; comentários sexuais, direta ou indiretamente dirigidos ao corpo da pessoa; fotografias e gravações não consentidas de partes íntimas; contato físico indevido ou não consentido; perseguição e encurralamento; masturbação e exibicionismo.
Por outro lado, estabelece, "como medida de prevenção", que devem ser colocados no metrô e nos trens metropolitanos, nos ônibus e em estações de mobilidade "cartazes e publicidade em que se sinalize que as condutas de assédio sexual estão proibidas e serão objeto de denúncia e sanção".
Nos fundamentos de seu projeto, o legislador Ferreyra recorda que existem diversos mitos sobre o assédio sexual de rua, como: "Isso só ocorre com mulheres 'bonitas'", "Se as mulheres não dizem nada, é porque gostaram", "As mulheres não se sentem incomodadas quando o rapaz que assedia é 'bonito'", "As mulheres têm culpa porque se vestem de forma a atrair os homens". Mas "a verdade”, diz Ferreyra, “é que todas essas ideias apenas encobrem uma situação que a cada dia parece mais insustentável".
Aixa já tem cópias dos três projetos em sua casa. Até sofrer o episódio de assédio, ela cursava licenciatura em Administração de Empresas, carreira que havia escolhido logo após abandonar o curso de Direito. Agora, conta, voltou a se entusiasmar com a ideia de se tornar advogada. E está convencida de que a aprovação das propostas legislativas servirá "para promover a consciência de que o assédio sexual de rua é uma das primeiras formas de violência contra a mulher".
Na entrevista a seguir, Verónica Lemi, da Acción Respeto, explica as diferenças entre um elogio, uma cantada e um ato de assédio sexual. Também se refere à aprovação de normativas para a prevenção e punição desta conduta em outros países, bem como às limitações da legislação argentina.
Há leis em outros países para punir o assédio sexual de rua?
O tema da legislação existente é um pouco confuso. Há leis em diferentes partes do mundo, mas na maior parte dos casos são municipais ou pouco específicas em termos de tipificação da conduta ofensiva. Na legislação argentina, está contemplada a "intimidação", mas não se estabelece o assédio sexual de rua como tal, enquanto que legalmente, o contato físico indevido é considerado abuso sexual, ainda que raramente seja denunciado desta forma e raramente o agressor seja detido. Córdoba tem, por exemplo, uma lei que contempla o assédio em meios de transporte. Leis especificamente voltadas para o assédio de rua como forma de violência de gênero, no momento, há poucas, mas eu acredito que isso se deva em parte ao fato de que o assunto foi incluído no debate público muito recentemente. A Bélgica chegou a tipificar a conduta recentemente com uma lei e, logo depois, o Peru aprovou a sua.
Quais os aspectos que você destacaria da lei peruana?
O ponto é estabelecer o assédio de rua como uma forma de violência contra as mulheres em espaço público, e essa é a novidade. No Peru, ainda não se tratou do aspecto punitivo: aprovam-se os aspectos vinculados à prevenção e à definição e categorização do assédio. O que é realmente transcendente na lei peruana é que ela estabelece a responsabilidade estatal de garantir às mulheres meios de denúncia e protocolos para sua atenção, coisa que até agora era impossível imaginar.
Quais são as diferenças entre um elogio, uma cantada e o assédio de rua?
São três formas de fala distintas, pelos elementos que compõem a situação comunicacional; desde a linguagem corporal, o tom, os marcadores discursivos, até os papéis dos participantes. Um elogio ocorre entre duas pessoas, indistintamente de seu gênero, e entre conhecidos ou, caso sejam desconhecidos, são certos marcadores discursivos que mostram ao interlocutor a intenção respeitosa. Se pensarmos sobre as interações que temos com desconhecidos na rua quando perguntamos as horas, quando queremos avisar que alguém deixou cair um papel ou que deixaram uma bolsa aberta, quando queremos pedir troco, inclusive às vezes quando queremos saber o preço de alguma coisa, dizemos "desculpa" antes. Desta maneira, reconhecemos o interlocutor como tal e como pessoa que talvez estejamos interrompendo. Uma das coisas que sempre ocorre é os homens perguntarem se não podem mais dizer nada nas ruas, e nós lhes respondermos que se querem dizer algo bonito a uma moça, que pelo menos falem "desculpa, posso falar uma coisa?", de modo que ela tenha ao menos a opção de aceitar ou não esta interação. E esse é o código utilizado para tudo, menos para as cantadas.
Como você definiria uma cantada, então?
As cantadas são comentários elogiosos – o que não é a mesma coisa que dizer que são elogios – que os homens fazem sobre as mulheres. Hoje em dia, a cantada já não é o verso poético rimado, hoje em dia ela se limita simplesmente a "que bonita!", "você é linda" e expressões que expressam unicamente essa admiração pela aparência de uma mulher. Mas nesta interação, e muitos homens ressaltam que essa é a "graça" de lançar uma cantada, o que vale é o impulso, a espontaneidade. É claro que o que para eles é espontaneidade, para a mulher é uma ação que interfere com sua liberdade de decidir se participa ou não, já que aquilo se impõe do nada e não lhe dá sequer tempo de reagir.
Pior ainda, se analisarmos o ato da fala, o homem, ao emitir esta opinião quando passa, sem esperar resposta e, sobretudo, não a reconhecendo como interlocutora, coloca-a no lugar de tema da mensagem, quer dizer, como objeto sobre o qual se fala e não como pessoa com quem se está falando. Assim como é incômodo que as pessoas falem de nós como se não estivéssemos presentes, isto é incômodo para muitas mulheres porque elas têm essa sensação de desumanização. Muitas mulheres não pensam tanto sobre isso e até curtem, e isso é perfeitamente válido, mas não podemos deixar de ouvir as mulheres que estão expressando este incômodo, já que a situação comunicacional está claramente colocando-as neste papel de objeto.
Do que depende a configuração de assédio de rua?
O contexto, o como, o onde e o quando, o tom, a postura. É uma forma de intimidação, é a perseguição constante na via pública. Já temos isso tão naturalizado que, quando uma mulher reage, tende-se a vê-la com maus olhos, em vez de perguntar a ela o que ocorreu. Quando uma mulher se queixa, diz-se que ela deveria gostar disso, que pelo menos significa que ela é bonita, como se nosso objetivo de vida fosse o olhar masculino.
Reportagem de Mariana Carbajal | Página/12 | Buenos Aires
Tradução: Henrique Mendes
fonte:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/40330/argentina+quer+punir+com+multa+e+prisao+assedio+de+rua+contra+mulheres.shtml
foto:http://m.operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/40330/argentina+quer+punir+com+multa+e+prisao+assedio+de+rua+contra+mulheres.shtml
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