24/11/2014

A síndrome da lata de sardinhas

Passageiro da classe turística voa em assentos cada vez menores. Companhias oferecem mais espaço em troca de uma sobretaxa.



Algo está mudando no céu. A Airbus apareceu nesta semana com a patente de uma rosquinha voadora. Um avião circular, onde os passageiros viajam sentados em um espaço redondo como se fosse o Maracanã. É mais uma, diz a fábrica, das 5.000 ideias que seus engenheiros desenvolvem por ano. Em princípio, o avião redondo jamais decolará. Mas isso é prova de que esse setor busca novas soluções, acima de tudo, para transportar mais gente em menos espaço. Sacrificando a comodidade.
“O problema da aviação é que há cinquenta anos ela é povoada por pessoas que pensam nela como uma maravilhosa experiência sexual, quando na verdade só é um ônibus com asas”, argumenta, com seu conhecido tom provocador, Michael O’Leary, executivo-chefe da Ryanair. Por trás da boutade há duas certezas. Na classe turística, a largura dos assentos está encolhendo, e a síndrome da lata de sardinha não se limita às companhias de baixo custo. “Apertam até o último centímetro”, queixa-se Rubén Sánchez, do site de defesa do consumidor Facua. Tampouco está muito distante o conceito de “ônibus aéreo”. A europeia Airbus já patenteou um sistema de assentos que se assemelham a selins de bicicletas unidos por uma barra horizontal. Eduardo Galicia Roquero, assessor de imprensa da companhia, diz que “não está previsto utilizá-lo”. Mas revela que colocar mais assentos em menos espaço é uma ideia diária das fábricas e companhias aéreas.
De fato, segundo o portal especializado traveler.com, o indicador do espaço para as pernas, conhecido no setor como pitch, que antes oscilava entre 33 e 34 polegadas (83,8 a 86,3 centímetros), estabilizou-se agora em 31 polegadas (78,7 centímetros) na maioria das companhias aéreas. Mais precisamente, o comparador de assentos seatguru.com observa que esse espaço caiu de 34 polegadas nos anos oitenta para as atuais 31. A variação é substancial. Em uma viagem longa, uma polegada (2,54 centímetros) pode fazer a diferença entre um voo agradável e um pesadelo. José Solaz, diretor de automação e meios de transporte do Instituto de Biomecânica de Valência, salienta os riscos de viajar completamente “encaixotado”: “Em percursos curtos, é apenas incômodo; em trajetos longos, acaba sendo perigosíssimo”. O especialista se refere à possibilidade de tromboses por causa da inatividade física. Sem falar no paradoxo contido no fato de essa redução ocorrer num momento em que a obesidade se tornou uma pandemia.
Por isso, essa questão das polegadas reúne aspectos econômicos, médicos e sociais. Nas últimas semanas, foram relatados vários atritos entre passageiros em pleno voo por reclinarem, ou não, a sua poltrona. O problema preocupa, e já há uma iniciativa no Senado norte-americano para tentar estabelecer um padrão nos assentos. Nesse cenário, e sabendo que os problemas surgidos a 10.000 metros de altura são muito diferentes dos que acontecem em terra, Boeing e Airbus brigam pela álgebra da poltrona.
A fábrica europeia defende o assento com uma largura de 18 polegadas (45,7 centímetros) na classe econômica “porque, sobretudo em viagens longas, faz a diferença em termos de conforto para o passageiro”, diz o assessor de imprensa Galicia Roquero. E vai além: “As poltronas e assentos em espaços públicos, como estádios, teatros e cinemas, cresceram em largura desde os anos sessenta e setenta. Por que manter assentos de 17 polegadas (43,1 centímetros) nos aviões, como foi o padrão nos últimos anos?”.
Essa cifra parece ter como alvo a arquirrival Boeing. A fábrica norte-americana diz não ter uma largura-padrão para seus assentos, e que cada companhia aérea configura os aviões segundo seu critério. Mas essas 17 polegadas se instalam cada vez mais. De fato, a Boeing espera entregar 36.770 novos aviões entre 2014 e 2033, dos quais 25.680 aparelhos serão de corredor único, com maior aproveitamento do espaço.
Evidentemente, por trás dessa estratégia redutora existe uma razão econômica. “Certamente é possível instalar assentos com uma distância mais cômoda no avião, de forma que todo mundo tenha maior espaço para os joelhos e as pernas”, observa René Dankwerth, vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento da fábrica alemã de poltronas Recaro, em entrevista ao The New York Times. “Entretanto, o preço da passagem subiria.” Seguindo esse caminho, algumas companhias norte-americanas, como United Airlines (classe Economy Plus), JetBlue (Even More Space) e American Airlines (Main Cabin Extra) criaram programas que, com o pagamento de uma sobretaxa, garantem mais espaço para as pernas. Kevin Carter, do seatguru.com, conta que outras empresas optaram por instalar uma nova classe intermediária entre a executiva e a econômica, denominada “econômica premium”, que garante mais comodidade “desde que pagando centenas de dólares a mais do que na classe turística”.
Assim, com o atual status quo, a guerra das poltronas entre os grandes fabricantes está em marcha. A Airbus aumentou de 180 para 189 assentos a capacidade da sua família A320neo (em fase de desenvolvimento), de corredor único, a fim de competir com os Boeing-737. A fábrica norte-americana, por sua vez, contra-atacou com um novo 737 configurado com até 200 poltronas. Dando um passo a mais nessa briga, a fábrica europeia planeja aumentar o tamanho da série A321neo. Passará de 220 para 240 assentos.
Mas nada garante que ficará por isso mesmo. Na Espanha, a Iberia mantém as 18,5 polegadas (47 centímetros) de largura de braço a braço da poltrona. E nos seus 11 aviões A340/600 coloca 300 assentos, mesma capacidade anterior à nova configuração. “Como as poltronas são menos volumosas [o setor tenta ganhar espaço com assentos feitos de materiais mais leves] podemos oferecer um pouco mais de margem entre assentos [opitch oscila entre 31 e 32 polegadas]”, diz um porta-voz da companhia. “Além disso, substituímos a bolsa de jornais e revistas – agora é uma espécie de rede – para que não subtraia espaço.”
O avião redondo patenteado pela Airbus

Para entender melhor essa história, é preciso lembrar que a cabine de um avião é um trompe-l’œil. A ilusão de um sólido onde se cria uma sensação de segurança e isolamento. Por exemplo, o 787 Dreamliner da Boeing recebeu janelas maiores e uma iluminação LED que simula o céu.
Como se vê, qualquer estratégia é válida para segurar o cliente. Tanto assim que as companhias estão se fixando no viajante frequente que, por causa da crise, deixou de voar de classe executiva e aderiu ao low cost. Esse é o cliente, segundo David Höhn, sócio responsável por transporte aéreo da consultoria KPMG, que as companhias aéreas de baixo custo desejam atrair com propostas como poder escolher o assento ou ter prioridade no embarque e desembarque – sempre pagando um pouco a mais. “O objetivo é prestar ao cliente um serviço personalizado apoiado em suas preferências”, afirma Höhn. Algo que nem sempre acontece lá em cima, no céu.

Reportagem de Miguel Ángel García Vega
fonte:http://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/21/economia/1416590153_866788.html
foto:http://culturaaeronautica.blogspot.com.br/2011/03/como-escolher-um-bom-assento-na-classe.html

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