07/06/2014

Venezuela: No país que se especializou em fabricar misses, sonho de ser coroada começa cedo

Indústria dos concursos de beleza inclui cursos de etiqueta para crianças e impõe padrão estético às mulheres venezuelanas.


Lucía Daniela Rodríguez tem quatro anos. Aos sábados, quando não está no jardim de infância, aprende a se maquiar, comportar-se em público e posar para fotos. Está inscrita em uma academia de modelagem em Caracas, onde a maioria das frequentadoras sonha ser Miss Venezuela.
Rodríguez conta que várias amigas também querem ser modelo. Esse é o primeiro passo para, quem sabe um dia, ter a oportunidade de estar na Quinta Miss Venezuela, a mansão onde as aspirantes à coroação mais famosa do país são preparadas. Para muitas delas, o sonho de um dia se tornar “Rainha da Beleza” foi alimentado desde a infância.
Não é para menos, no país que mais deu misses ao mundo e é conhecido como uma fábrica de beldades. Com sete coroações de venezuelanas como Miss Universo, seis como Miss Mundo e seis como Miss Internacional, o concurso para escolher a mulher mais bela passou a ser um evento social que reunia famílias, motivava apostas e debates e ganhava destaques na imprensa.
Embora muitos venezuelanos afirmem que o frenesi com os concursos tenha diminuído nos últimos anos, não se pode negar que a tradição de escolher Rainhas da Beleza faça parte da cultura da Venezuela. A ex-modelo Melany Barreto, de 17 anos, sempre sonhou com esse momento, mas sua estatura, de 1,50 metro, fez com que optasse por ser animadora de eventos, atividade para a qual se prepara.
Barreto é a professora de poses para foto e passarela na academia de modelagem Lucchi’s Internacional Models Agency, criada pela sua avó, Luisa Lucchi. “A maioria das meninas que vêm aqui sonha em ser Miss Venezuela, acho que todas as venezuelanas”, diz, explicando que a academia ensina todas as ferramentas para que as meninas sejam modelos e possam entrar na Quinta.
“Não há escolas de misses, há de modelos. Para avançar, é preciso entrar na Quinta do Miss Venezuela, onde se faz a preparação para o concurso”, esclarece. Segundo ela, sua avó sempre quis ensinar as meninas desde pequenas para que fossem misses. “Que menina não gostaria de ser Miss Venezuela? Mas isso é uma preparação enorme, e quanto menor, mais se aprende, porque quando pequenos somos uma esponjinha e absorvemos tudo”, explica.
Rodríguez é uma das pequenas que mostram já estar assimilando a aprendizagem. Sua mãe, Daniela de Jesús, relata que a filha passou a dizer: “Mãe, você não pode se sentar assim!”. Entre as aulas que mais gosta, a aspirante mirim a miss cita as de maquiagem e pose para fotos.
Os cursos destinados a crianças, adolescentes e jovens da agência também incluem módulos de etiqueta e protocolo, e dicção e oratória. Barreto explica que muitas mães inscrevem as filhas na agência quando identificam timidez e insegurança, e diz que as dicas para as pequenas “lhes ajudam a se desenvolver em público, a saber como comer, abrir uma porta, coisas simples que na atualidade não prestamos atenção, mas que são importantes e ficam para o resto da vida”.
Com postura reta e uma das mãos apoiada sobre a mesa, um grupo de 20 adolescentes recebe orientações sobre uso de diferentes vestimentas na passarela. “Que preparação deve ter uma modelo antes de subir numa passarela com traje de banho?”, pergunta às aspirantes a ex-modelo Raquel Oliveros, que instrui sobre etiqueta e protocolo, além assessorar outras áreas da modelagem.
“Deve que estar tonificada, para que não se mexa muito, não se veja muito flácida”, responde uma das meninas, após pedir a palavra levantando o dedo indicador. A instrutora concorda: “Tem que fazer exercício. Vocês são jovens, aproveitem, caminhem. Não posso subir numa passarela com roupa de banho e tudo se mexendo, isso é o pior que pode existir, porque as pessoas não vão ver a roupa de banho, mas o que se move”, diz, provocando risos tímidos na sala.
Beleza imposta
Apesar do desejo e dedicação das jovens em centenas de agências como esta pelo país, as candidatas sabem que passarão pelo olhar crítico de Osmel Sousa, presidente da organização que realiza o evento e conhecido no país como o “Czar da Beleza”. Adepto da cirurgia plástica, o empresário não poupa retoques para transformar mulheres segundo seu critério de beleza — corroborado internacionalmente pelas frequentes vitórias de venezuelanas nos concursos.
Para a socióloga feminista e professora de Teoria de Gênero Indhira Libertad, Sousa tem marcado durante décadas a estética e o padrão de beleza das venezuelanas. “Que dano ele nos faz”, lamenta, afirmando que os traços impostos nunca tentaram resgatar características venezuelanas. “O mais próximo foram umas mais morenas ou com um pouco de traços indígenas, mas também passadas pelo bisturi da medicina mercantil”, explica, afirmando que escolher rainhas da beleza é uma tradição antiga na Venezuela, mas que os concursos ganharam um matiz “comercial e classista”.
De fato, no reality show "Tudo pela Coroa”, lançado no ano passado para expor a preparação e seleção das aspirantes ao Miss Venezuela, o guru da beleza disse a algumas das jovens que deveriam passar por operações. Assim como os recorrentes pedidos para que as modelos emagreçam, a orientação foi acatada.
Os critérios de beleza acarretam sofrimentos, e muitas vezes consequências físicas e financeiras para meninas que um dia sonham em estar no concurso, antes mesmo de chegar à Quinta. Desmaios durante dietas, uma espécie de plástico costurado na língua para não comer alimentos sólidos e pagamento de cirurgias plásticas são algumas delas.
Rumores circularam na imprensa venezuelana de que a vencedora do Miss Venezuela 2013, Migbelis Castellanos, teria tido problemas na sala de operações, no começo deste ano, ao fazer uma cirurgia no nariz e um aumento de panturrilha. “Estou viva. Salva. Com vontade de trazer essa oitava coroa [do Miss Universo], e estou trabalhando para isso”, escreveu a modelo em sua conta no Twitter, sem confirmar nem desmentir a versão.
Para Libertad, o paradigma de beleza imposto pelos concursos estão repletos de misoginia, desprezo pelo corpo feminino e anulação da mulher como ser pensante. “É preciso diferenciar o direito que as mulheres temos de nos sentir bem com nosso corpo, de nos irradiar, coisa que temos que reivindicar, da superficialidade e banalidade deste estereótipo de beleza. Há um bombardeio da indústria do entretenimento para que não gostemos dos nossos corpos”, diz.
Contra essa imposição estética, coletivos feministas e ciclistas protestaram no ano passado contra os “antivalores” que acusam o concurso de promover. É difícil ser cidadã no “país da beleza”, sinalizava a frase ao lado do desenho uma miss crucificada na convocatória no Facebook para a manifestação diante do local onde o Miss Venezuela foi realizado. Os títulos “Miss Anorexia”, “Miss Violência de Gênero” e “Miss Heteronormatividade” estampavam faixas e um cartaz as convidava a fugir: “Escapem, meninas, aqui fora todas vocês podem ser únicas e felizes”.
“Nisso sou muito realista, é um negócio no qual a Venezuela aprendeu que era uma fonte importante para gerar recursos, no que é estética, odontologia, cirurgiões plásticos. Há todo um mundo ao redor dos reinados de beleza, mesmo sem chegar ao Miss Venezuela, já que no casting são quatro, cinco mil meninas”, explica Harley Torres, instrutora de oficinas de modelagem.
Torres explica que no caminho do sonho para ser misses, as concorrentes costumam gastar mais do que ganham para tanta preparação. Apesar de afirmar que não gosta de criar disfarces, mas sim fazer com que as meninas sejam o que são em uma versão melhorada, reconhece que os padrões do concurso dão audiência. “As pessoas continuam assistindo porque é uma questão de querer chegar a ser como. Se não tem audiência, não tem anunciantes. Mas quem faz essa audiência é o povo”, diz.
Menor expectativa
Para Libertad, o processo de reivindicação da identidade venezuelana dos últimos anos incidiu nos padrões estéticos. “Começamos a entender que o bonito não é o estereótipo, mas sim com o que eu me identifico. A grande maioria não se vê identificada e começa a se perguntar: 'por que essa é a beleza, se eu não pareço com ela, ninguém que eu conheço parece com ela?'. Há um olhar mais crítico”, afirma.
Torres, por outro lado, não viu essa mudança de percepção, mas reconhece que seria “lindo” que o concurso chegasse a povoados e fosse mais autóctone, como na Colômbia. Como muitos dos venezuelanos consultados por Opera Mundi, a instrutora também afirma que a expectativa pública em torno do evento diminuiu nos últimos anos.
O Miss Venezuela, no entanto, ainda é considerado o evento de maior audiência do país e motivo de disputa entre anunciantes. Somente no primeiro episódio, em julho do ano passado, do “Tudo pela Coroa”, série que também foi transmitida pela Sony, a emissora Venevisión teve 57% da audiência nacional. Atualmente, adiciona-se o forte eco nas redes sociais, que soma centenas de milhões de menções.
Em um país em que até buques petrolíferos levavam nomes de misses — antes de serem alterados por Hugo Chávez —, as atenções atraídas pelo evento ainda são muitas. E a coroa inspira as jovens que consideram os concursos como um trampolim para o reconhecimento, em diversas áreas.
Vide o caso da Miss Universo Irene Sáez, que foi prefeita e governadora, e chegou a concorrer nas eleições presidenciais de 1998 contra Chávez, em um exemplo da notoriedade que uma Rainha da Beleza pode chegar a adquirir. “Ganhando ou não, a competição já dá muita projeção”, explica Torres. Não à toa, o sonho de um dia estar entre as candidatas à coroa continua movimentando essa rentável indústria, que tantas misses já deu ao mundo.

Reportagem de Luciana Taddeo
fonte:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/35514/venezuela+no+pais+que+se+especializou+em+fabricar+misses+sonho+de+ser+coroada+comeca+cedo.shtml
foto:http://www.dhgate.com/store/product/miss-venezuela-2014-irene-esser-dresses-sexy/179397694.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pela visita e pelo comentário!