O canabidiol, derivado da maconha utilizado para tratar convulsão, ainda está sob análise da Anvisa. Mas esse não é o único caso empacado na agência. Medicamentos e pesquisas clínicas que poderiam beneficiar milhares de brasileiros esbarram na burocracia do órgão.
Na última semana, uma reunião da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deveria discutir a reclassificação do canabidiol, um composto derivado da maconha. Se aprovada, a substância passaria de proibida para de controle especial. A Anvisa, no entanto, resolveu adiara decisão.
O canabidiol é um dos componentes da cannabis — sozinho, ele não provoca dependência e nem desencadeia efeitos psicoativos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o extrato da substância é autorizado em alguns Estados e vendido como suplemento alimentar — o produto não é regulado pelo Food and Drug Administration (FDA).
Em agosto de 2013, a rede americana CNN exibiu uma reportagem sobre a história de Charlotte Figi, hoje com sete anos e portadora de Síndrome de Dravet, uma forma rara e grave de epilepsia. Aos cinco anos, ela sofria 300 convulsões graves por semana e havia perdido a capacidade de andar, falar e comer. Sua família decidiu tratá-la com o extrato de um tipo de cannabis rico em canabidiol. Aos seis anos, Charlotte voltou a andar e a falar, e seus episódios de convulsões foram reduzidos para duas a três vezes por mês. Depois de Charlotte, outras histórias semelhantes se tornaram conhecidas. No Brasil, famílias entraram na Justiça para terem o direito de importar o extrato de canabidiol.
Decisão — A reclassificação do canabidiol para substância controlada poderia facilitar a condução de pesquisas sobre o composto, explica o psiquiatra José Alexandre de Souza Crippa, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP) e pesquisador do assunto. Seus estudos testam o composto, em animais e em humanos, para o tratamento de doença de Parkinson, esquizofrenia, fobia social, transtornos do sono e até dependência química.
"Quase todas as nossas pesquisas são feitas com canabidiol puro, e isso é diferente da maconha. A maconha possui outros compostos e seu uso a longo prazo pode prejudicar a saúde", diz Crippa. "É um equívoco pensar que reclassificar o canabidiol seria o mesmo que liberar a maconha."
Mesmo que o canabidiol deixe de ser uma substância proibida, contudo, ele não será receitado e comercializado no Brasil imediatamente. Antes dessa etapa, seria preciso que estudos clínicos de grande escala que comprovem a eficácia e segurança fossem concluídos — a partir dos resultados, o produto seria submetido à análise na Anvisa.
Demora — Esse é o caminho que deve ser seguido por todo novo medicamento antes de chegar às prateleiras brasileiras. É necessário que o fabricante prove à agência que o produto é eficaz e não colocará a vida do paciente em risco. A partir das informações apresentadas, a entidade decide se concede ou não o registro. Esse é um processo complexo e lento. Segundo dados disponíveis no site da Anvisa, o prazo médio para a análise de registro de novos remédios é de 512 dias.
"Um medicamento inovador geralmente representa um tratamento que não existia até então. Se um paciente não responde aos medicamentos disponíveis e não tem acesso ao remédio novo, fica sem opção", diz Antônio Britto, presidente executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).
Impasse — Além da demora, os critérios do órgão para deliberar sobre o pedido de registro de uma nova droga costumam ser alvo de críticas. Um exemplo é a lenalidomida, aprovada em cerca de setenta países, mas cujo registro foi negado pela agência brasileira. O medicamento é indicado para pacientes com mieloma múltiplo, um câncer de medula óssea, que não respondem aos tratamentos disponíveis.
Carlos Chiattone, diretor da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), defende que o remédio, se indicado corretamente, é mais seguro do que as drogas atuais e, por isso, pode ser usado por um período maior de tempo. "Temos recebido da Anvisa negativas de medicações altamente relevantes e comprovadas cientificamente", diz.
A entidade, por sua vez, alega que o produto não "apresentou provas de qualidade, segurança e eficácia necessárias para a aprovação do registro". "Ou todos esses países estão errados, ou somente nós estamos", diz Antônio Britto, da Interfarma.
Avanços? — A Anvisa tem sinalizado que esse cenário pode mudar — ou ao menos melhorar um pouco. Em uma audiência pública realizada em maio na Câmara dos Deputados, o gerente-geral de medicamentos da agência, Ricardo Ferreira Borges, assumiu que a legislação sobre o assunto precisa ser atualizada.
Além disso, a Anvisa apresentou no mês passado uma proposta para acelerar a autorização de pesquisas clínicas no Brasil, estipulando um prazo de 90 dias para se posicionar — o órgão deve realizar uma consulta pública neste mês sobre o assunto.
Um levantamento da Abracro, associação que reúne as Organizações Representativas de Pesquisas Clínicas, analisou 85 protocolos de estudos que foram submetidos para análise na agência entre janeiro de 2013 e março de 2014. Desses, apenas doze foram aprovados e o prazo médio para o parecer final foi de 245 dias.
"Em uma pesquisa internacional, Estados Unidos e Europa levam 90 dias para dar uma resposta sobre a participação no estudo. No Brasil, esse tempo é muito maior, e isso faz com que o país fique de fora desses projetos. Os médicos deixam de ter contato com novas tecnologias e remédios, nossos pacientes deixam de participar de estudos e somos excluídos do que há de mais moderno", diz Fernando de Resende Francisco, membro da diretoria da Abracro.
Procurada pelo site de VEJA, a Anvisa não respondeu ao pedido de entrevista.
Doenças com medicamentos na fila de espera da Anvisa
Artrite Reumatoide
A doença: A artrite reumatoide se manifesta quando o sistema imunológico do corpo ataca tecidos saudáveis, levando a inflamações nas articulações. O tratamento inicial da doença é feito com o medicamento metotrexato, mas entre 30% e 50% dos pacientes não respondem à droga. Nesses casos, indica-se a troca do remédio ou associação com outra medicação. Se os resultados não forem positivos, os médicos receitam medicamentos biológicos, que são injetáveis.
O medicamento: O citrato de tofacitinibe tem um mecanismo de ação diferente das drogas disponíveis atualmente. Segundo Licia da Mota, coordenadora da comissão de artrite reumatoide da Sociedade Brasileira de Reumatologia, a substância age dentro das células, inibindo a ação da quinase, uma proteína que contribui com o processo de inflamação. "Esse remédio pode ajudar pacientes que não respondem aos medicamentos disponíveis, sendo mais uma opção para o tratamento inicial", diz Licia. A substância tem nome comercial de Xeljanz.
Situação: Foi aprovado pela FDA em novembro de 2012. Está em fase da análise técnica na Anvisa.
Rosácea
A doença: A rosácea é uma enfermidade crônica da pele cuja principal característica é vermelhidão no rosto. Em pessoas com o problema, os vasos capilares da pele demoram para reagir quando se dilatam – com exposição ao sol ou em temperaturas altas, por exemplo. Essa dilatação provoca uma irritação cutânea e desencadeia um processo inflamatório que pode causar vermelhidão, lesões e até deformação do rosto. O tratamento inicial inclui uso de protetor solar. Se a doença avançar, são indicados antibióticos e, em casos mais graves, cirurgia.
O medicamento: O brimonidine é um composto capaz de contrair vasos dilatados e dar uma tonalidade mais clara à pele. O medicamento, cujo nome comercial é Mirvaso, é de uso tópico. De acordo com Adilson Costa, chefe do serviço de dermatologia da PUC-Campinas, o remédio é o primeiro que impede a dilatação crônica dos vasos na rosácea e deve ser usado na fase inicial da doença, antes do surgimento de lesões inflamatórias.
Situação: Recebeu aprovação nos Estados Unidos em agosto de 2013. Está em fase da análise técnica na Anvisa.
Mieloma Múltiplo
A doença: O mieloma múltiplo é um câncer que acomete células da medula óssea responsáveis pela produção de anticorpos de defesa do organismo. O tratamento pode incluir quimioterapia e transplante de medula óssea.
O medicamento: A lenalidomida é indicada a pacientes com mieloma múltiplo que não respondem aos dois principais medicamentos para a doença: a talidomida e o bortezomide, ambos aprovados no Brasil. A droga é análoga à talidomida, oferecendo os mesmos riscos, incluindo o de malformação fetal. Segundo Carlos Chiattone, diretor da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), se indicada corretamente — como para pessoas que não estão mais em idade reprodutiva —, a droga apresenta menos efeitos colaterais do que os medicamentos disponíveis e, por isso, pode ser usada por um período maior de tempo, o que aumenta a sua eficácia.
Situação: Aprovado em cerca de 70 países. Teve o registro negado pela Anvisa porque "não apresentou as provas de qualidade, segurança e eficácia necessárias para a aprovação do registro", segundo a agência.
Câncer de Próstata
A doença: O câncer de próstata é o segundo tipo de tumor mais comum entre os brasileiros, atrás somente do câncer de pele não melanoma. Segundo estimativas do Inca, 22,8% de todos os tumores diagnosticados em homens no país em 2014 serão de próstata — totalizando 68.800 novos casos da doença neste ano.
O medicamento: A enzalutamida é uma classe de drogas conhecidas como inibidoras de andrógeno, que bloqueiam a ação de hormônios que estimulam o crescimento do câncer na próstata. Estudos clínicos mostraram que o medicamento pode aumentar em cinco meses a sobrevida de pacientes que apresentam câncer de próstata avançado mesmo depois de terem passado pelo tratamento hormonal e pela quimioterapia. A droga também contribui com o retardamento da progressão da doença. "Novas pesquisas também devem mostrar se o medicamento pode ser usado antes mesmo da quimioterapia", diz Aldo Lourenço Dettino, oncologista clínico do Hospital A. C. Camargo.
Situação: Aprovado nos Estados Unidos em novembro de 2012 e na Europa em junho de 2013. Segundo a fabricante Astillas Pharma, aguarda decisão sobre registro na Anvisa desde 2013. A agência, porém, informa que o medicamento não foi submetido para análise.
Doença de Crohn e retocolite ulcerativa
As doenças: Trata-se de duas doenças inflamatórias intestinais. A doença de Crohn é caracterizada por um processo de inflamação e ulceração nas camadas profundas da parede intestinal, principalmente do intestino delgado e do cólon. Já a retocolite ulcerativa é uma inflamação do revestimento interno do cólon ou do reto.
O medicamento: O vedolizumabe é um medicamento biológico que pode ser oferecido a pacientes que não respondem às terapias convencionais. "Ele não é mais eficaz do que os disponíveis atualmente, mas é uma opção a mais para pessoas com essas doenças", diz o gastroenterologista Flávio Quilici, professor da PUC-Campinas. De acordo com o médico, atualmente no Brasil há três medicamentos biológicos para tratar essas moléstias. "Como as doenças são crônicas e os pacientes precisam tomar remédio a vida toda, pode acontecer de eles se tornarem resistente ao medicamento. Daí a importância de novas drogas", diz.
Situação: Foi aprovado em maio deste ano nos Estados Unidos. Não está disponível no Brasil — a fabricante Takeda não informa se já foi submetido a processo de análise na Anvisa.
Obesidade
A doença: A obesidade é caracterizada por um índice de massa corporal (IMC), uma relação entre peso e altura de uma pessoa, acima de 30. A doença é conhecida por elevar o risco de moléstias como as cardíacas e o câncer. No Brasil, 17,5% da população é obesa, segundo dados deste ano do Ministério da Saúde.
O medicamento: Os derivados de anfetamina (femproporex, anfepramona e mazindol) são inibidores de apetite usados no tratamento de obesidade. O femproporex e a anfepramona elevam a ação da noradrelina no cérebro, substância responsável pela sensação de fome, reduzindo o apetite. Já o mazindol aumenta os níveis de serotonina, neurotransmissor que diz ao organismo a hora de parar de comer.
Situação: Aprovado nos Estados Unidos. Proibido no Brasil desde outubro de 2011.
Reportagem de Vivian Carrer Elias
fonte:http://veja.abril.com.br/noticia/saude/medicamentos-na-fila-de-espera
foto:http://quixeramobimagora.blogspot.com.br/2010_03_01_archive.html
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