Os réus da Ação Penal 470, o mensalão, têm alguma razão ao reclamar por um segundo julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. A opinião é do jurista português José Joaquim Gomes Canotilho (foto acima), que veio ao Brasil para participar do lançamento da obra Comentários à Constituição do Brasil, livro do qual foi um dos coordenadores científicos, ao lado do ministro do STF Gilmar Mendes, do procurador de Justiça e professor Lênio Streck e do professor Ingo Sarlet.
Canotilho, que é doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, é professor catedrático da mesma instituição e professor convidado da Universidade de Macau, e tem seu nome citado como referência em mais de 500 decisões do STF, incluinoi o próprio caso do mensalão. Para ele, que disse não ter acompanhado o caso em detalhes, também é válida a reclamação em relação à atuação institucional do ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal e relator do caso.
Canotilho defendeu, como disse fazer em debates sobre a Constituição portuguesa, que investigação e acusação fiquem a cargo de órgãos diferentes em processos de Direito Penal. Em relação à Constituição brasileira, que completa 25 anos em 2013, José Joaquim Gomes Canotilho apontou a resposta dada pelo texto aos desafios causados pelo momento por que o país passava quando de sua edição, mas citou exageros semelhantes aos encontrados na Constituição portuguesa. Leia a íntegra da entrevista concedida ao repórter Ricardo Mendonça, do jornal Folha de S. Paulo.
O senhor acompanhou o julgamento do mensalão? Que balanço faz?
Eu estava aqui — no Brasil — quando ocorreu a primeira audiência. E fiquei com a ideia de que a política é a arte mais nobre dos homens, desde que colocada a serviço das pessoas e da humanidade. Mas a política também tem mãos sujas, como dizia Albert Camus. Há mãos sujas porque a política implica, muitas vezes, a cumplicidade com atos abjetos, com programas que nós nem sempre consideramos os melhores em termos de moralidade, em termos de valores republicanos. E por isso é uma atividade que tanto pode ser criadora de confiança, quanto pode ser criadora de desconfiança. E aqui no Brasil, o que se cimentava era a desconfiança, relativamente à política, relativamente aos políticos. Então, de certo modo, o tribunal tinha ali uma obrigação de julgar bem. Não é só um tribunal constitucional, é um tribunal de recursos, o que o torna mais visível. É sempre certo que, em casos desses, há sempre uma publicidade multiplicada. Não só pelo estatuto das pessoas — que estavam sendo julgadas —, mas porque há sempre uma certa opinião pública que pretende, em muitos momentos da vida coletiva, uma catarse, no sentido de alguma purificação. São esses os fatos suficientemente demonstrados: o Brasil tem necessidade da catarse, da purificação, da honradez, da justificação da legitimação do próprio poder político. Mas não acompanhei sistematicamente — todo o julgamento. Acompanhei à distância.
Como o senhor disse, é uma corte constitucional. Mas tratou-se de um caso penal. O que pensa desse acúmulo de funções?
Esse é um dos tópicos que eu tenho algumas dúvidas, de um tribunal com tanto poder. O tribunal brasileiro é dos tribunais com mais poderes no mundo.
O senhor compara com quais?
Primeiro, é mais poderoso que o dos Estados Unidos. Porque tem um conjunto de fiscalizações, que não é apenas a fiscalização concreta, que não existe nos EUA. Depois, articula as dimensões de tribunal de revisão, de última palavra, com as funções constitucionais. E daí vai criando o direito constitucional e, ao mesmo tempo, julgando casos. É o que eu tenho dito: o Brasil tem uma outra Constituição feita pela jurisprudência, sobretudo do Supremo Tribunal Federal. Os tribunais constitucionais — de outros países — não têm essas funções, de serem tribunais penais. E por isso é que eu digo que o STF é o tribunal com mais força. E, por outro lado, através de suas decisões, é um tribunal que consegue estar em sintonia com a opinião pública. Eu recordo do problema da desfiliação partidária — (fidelidade), do problema dos índios (Raposa Serra do Sol), do problema das algemas (limitação no uso). Podemos não concordar. Mas o povo estava em tendência de sintonia com o sentido dessas decisões.
E em relação aos tribunais da Europa?
É muito mais poderoso, muito mais. Não há nenhum tribunal por lá parecido com o Supremo Tribunal Federal. Como tribunal, acumula competências e poderes que a maior parte dos tribunais não tem, pois só são tribunais constitucionais. Ou, por outro lado, são só supremos tribunais que não têm as funções que tem o tribunal constitucional.
É comum a avaliação de que o STF foi muito rigoroso no julgamento do mensalão. Na sua opinião, que risco pode correr se, nos próximos casos envolvendo políticos importantes, não trabalhar com o mesmo rigor?
Eu acho que o tribunal depende muito dos juízes, dos protagonistas que estão no tribunal. Ele é formado por pessoas, elas têm suas pré-compreensões, sua formação. Agora, eu entendo que o tribunal tem assinalado patamares que os vinculam a ele próprio. Portanto, a medida que vai criando precedentes, vincula-se a ele próprio. E ainda tem outra característica: aquilo que era uma norma concreta desconecta-se do caso concreto e passa a ser uma norma geral que vincula o tribunal e vincula o poder político. O que o tribunal já decidiu, vamos vincular como precedente, mas em termos abstratos. Por outro lado, o poder político também vai se sentir vinculado.
Os réus reclamam que foram julgados já originalmente no STF e agora não têm um segundo tribunal para recorrer. É uma violação?
Há um pouco de verdade nisso. Quando a gente diz que tem de ter sempre direito a recurso por uma segunda instância, para estar mais informado, é, em geral, nas questões penais. Ou seja, o duplo grau de jurisdição. Nós consideramos isso como um dado constitucional em questões penais. Isso é verdade.
E qual seria a solução nesse caso?
É... Não tem muita solução. Porque, por um lado, nós exigimos que pessoas com estatuto de deputado não sejam julgadas por juiz de primeira instância. E acabamos por dizer: não têm de ser julgados (só) por juízes de última instância, pois afronta a dignidade. Então não tenho segurança de dizer (o que seria o melhor). Não há recursos sobre todas as coisas. Agora, na questão penal, é também dado como certo que o duplo grau de jurisdição é quase uma dimensão material do direito ao direito de ir aos tribunais. Há alguma razão (dos réus) aí.
Outra reclamação muito repetida é que o mesmo ministro, Joaquim Barbosa, cuidou de todas as etapas do processo. Do recebimento da denúncia ao julgamento. Foi relator e ainda atuou como presidente da corte ao longo do mesmo julgamento.
Não conheço. De qualquer modo, o que eu tenho defendido sobre a Constituição portuguesa, mesmo contra meus colegas criminalistas, é que, num processo justo em direito penal — essa é uma opinião minoritária — quem investiga não acusa, quem acusa não julga. São sempre órgãos diferentes. Portanto, se quem investiga é a polícia judiciária ou se é o Ministério Público, este, se investigou, não acusa. O Ministério Público que acusar e o juiz que acusar, não julga. Isso para não transportar as pré-compreensões adquiridas em outros momentos do processo ao momento do julgamento. Eu tenho defendido essa ideia para a Constituição portuguesa. Os meus colegas penais dizem que isso é quase impraticável, porque exigiria um juiz para investigar, depois exigiria o juiz da acusação, e depois um outro juiz para a audiência e julgamento. Mas (defendo) essa coisa simples: quem investiga não acusa, quem acusa não julga. Então é razoável questionarmos.
Nunca um julgamento foi tão divulgado quanto este do mensalão. Além disso, há a TV Justiça, que transmitiu tudo ao vivo. Que avaliação faz dessa novidade?
Eu tenho uma visão conservadora quanto a isso. Os trabalhos do Supremo consagram audiência pública, a não ser quando há questões de reserva, de dignidade e segurança. Mas os tribunais sempre foram locais de publicidade crítica. Me custa mais a aceitar os novos tempos, aquilo ser transmitido para o mundo. Não sou das pessoas mais entusiasmadas com a TV Justiça. Eu não gosto muito.
Por quê? O senhor acha que interfere no comportamento do magistrado?
Pode não interferir. E acho que não podemos pôr assim as questões. Que perturba a espontaneidade do argumento e do contra-argumento, isso parece-me que sim. Por outro lado, as discussões que às vezes temos nos júris, elas ficam menos à vontade, pois estamos ali, não com a câmera escondida, mas com a câmera aberta. Quanto aos resultados em termos de justiça, não tenho argumentos para dizer que processo [transmitido pela TV] não seja justo. Possivelmente é um processo adaptado a um outro esquema, o sistema de publicidade crítica, que não apenas o da publicidade dentro da sala da audiência. Mas não gosto, não.
A Constituição brasileira fez 25 anos. O que a distingue das outras positivamente?
É uma característica que tem sido apontada nas constituições programáticas. As constituições programáticas são aquelas que, pelas suas próprias características, regulam aspectos da vida econômica, da vida social, da vida cultural. A medida que esses domínios da vida se tornam domínios de bastante sensibilidade política, evidentemente que esses ruídos políticos transferem-se também para as normas constitucionais; e a Constituição acaba por sofrer a mesma contestação que sofrem outras leis. Não está, portanto, acima do cotidiano, dos projetos políticos, das políticas públicas. Eu penso que a Constituição respondeu, em termos de contemporaneidade, a alguns desafios: o problema do ambiente, da comunicação social, sobretudo do acesso aos dados. Uma Constituição que foi feita depois de um período autoritário e que se proclamou defensora dos direitos, liberdades e garantias.
E o aspecto negativo?
Teve exageros. Os juros, os salários, ou seja, tão detalhada que acaba ultrapassada. Isso também aconteceu com a Constituição portuguesa. Nesse aspecto, é uma Constituição que pecou pelo excesso. Em outros casos, foi o contexto, estava lá o Centão, os constitucionalismos que existem em qualquer uma. Mas hoje vê-se que não foi uma Constituição que impediu o progresso, apesar das críticas. Muitos entendem que é uma Constituição que tem muitos custos, fui a um congresso sobre isso. O que eu entendo é que uma Constituição que já tem todos esses anos, 25 anos, não aprofundou as divergências, os dissensos no Brasil. Houve muita contestação, mas não podemos dizer que ela dividiu o Brasil. Já teve uma revisão. E ela tem se adaptado, na medida em que surgem os problemas. O grande êxito é que depois de muitas convulsões, acabou por ser um instrumento de pacificação. E já há uma outra Constituição, muito rica em termos de sugestões, o ativismo judiciário, completada pela jurisprudência rica dos tribunais. É uma Constituição que está viva. E está provado que o cidadão gosta do amparo no plano político e social.
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