As próximas semanas são decisivas para o futuro do Brasil. É a reta final da
atuação de uma das mais agressivas formações legislativas que já passaram por
Brasília, e que ficará marcada no futuro pela grande destruição de direitos
ambientais, principalmente a aprovação do Código Florestal, as constantes
tentativas da Comissão de Meio Ambiente, presidida pelo senador Blairo Maggi
(PR), de autorizar o plantio de cana na Amazônia, e uma série de medidas de
menor impacto na mídia mas com grande força administrativa, como de restringir
a atuação de órgãos ambientais como o Ibama. Também ficará marcada pela
intolerância, como a postura da atual Comissão de Direitos Humanos, chefiada
pelo pastor Marco Feliciano (PSC), e pelo imenso retrocesso de direitos que
parte dos congressistas estão tentando impor às populações mais vulneráveis e
mais excluídas no Brasil: os povos indígenas, quilombolas e populações
tradicionais. No ano que vem, ano eleitoral, o Congresso não terá a mesma
força. Por essa razão, o trator ruralista vai tentar forçar, ao máximo, nas
próximas semanas, a modificação da Constituição Federal com a PEC 215 e o PLP
227, projetos que acabam com as demarcações de terras e abrem as terras já
demarcadas para a exploração.
“As mesmas elites que massacraram os índios, historicamente, querem voltar a
fazê-lo agora”, alerta o antropólogo Beto Ricardo. Essas elites, diz na
entrevista abaixo, feita por e-mail, “foram responsáveis pela constituição de
uma das sociedades mais desiguais do mundo contemporâneo, com uma das maiores
concentrações fundiárias ainda existentes.”
O antropólogo Beto Ricardo é um dos fundadores do Instituto Socioambiental
(ISA), uma das maiores organizações de defesa dos direitos indígenas e de
populações tradicionais. Atualmente, em São Paulo, o ISA fez a curadoria da
mostra “Setembro Verde: Resistência Indígena”, exposição em cartaz na galeria Matilha Cultural.
A bancada ruralista promete uma movimentação intensa nas próximas
duas semanas, principalmente depois da aprovação da Comissão que vai discutir a
PEC 215. Para se defender, os índios estão indo a Brasília protestar. O que
está em jogo? Como esse debate está acontecendo?
A bancada ruralista e os seus interlocutores dentro do governo pretendem
detonar os direitos constitucionais dos índios, mas não querem discutir o
assunto com eles. Sabem que os índios virão a Brasília na primeira semana de
outubro e talvez pretendam liquidar a fatura nessa comissão especial que foi
criada, antes que os índios possam chegar à capital. Tratam de interesses
inconfessáveis. Não há no mundo um caso de poder legislativo que proceda à
demarcação de terras, o que é uma tarefa tipicamente executiva. Ao transferir
uma competência executiva para o legislativo, a bancada ruralista pretende
paralisar os processos ou retalhar territórios com base em critérios políticos,
o que é flagrantemente inconstitucional e, portanto, inconfessável.
Os índios entendem que o texto constitucional vigente constitui um pacto
entre o Estado brasileiro e os seus povos. Mudar esse texto, de forma expedita,
nebulosa e unilateral, representaria o rompimento desse pacto. É algo
inaceitável. Os índios se perguntam, nesse momento, porque os ruralistas (que
são todos grandes proprietários de terras) defendem o direito de propriedade só
para eles?
Uma análise do ISA mostrou diversos projetos contrários aos direitos
indígenas e quem são os parlamentares por trás. Por que
tantos projetos? Não bastaria um? Qual é a estratégia por trás disso?
Cada parlamentar anti-indígena quer mostrar serviço para os seus
financiadores de campanha, o que se faz melhor através de alguma comprovável
autoria. Alguns pretendem destruir simultaneamente os direitos dos índios, dos
quilombolas e dos brasileiros em geral ao meio ambiente sadio. Outros propõem
destruir primeiro alguns e depois outros. Além disso, certas propostas podem se
prestar melhor à chantagem contra o governo, como é o caso da PEC 215, para
forçar a aprovação de outras propostas, como o PLP 227, que é de hierarquia
legal inferior (e precisa de menor quórum para aprovação) mas mais lesivo aos
direitos indígenas em decorrência da abrangência das suas disposições. Agora
apareceu outro projeto de lei complementar no Senado, apresentado pelo senador
Romero Jucá, mas que parece constituir a proposta (ainda não assumida) do
próprio governo Dilma.
Uma Constituição é uma lei para o futuro de um país, e esse ano
completam 25 anos da atual Constituição. O que aconteceu de positivo nesse
período, pensando em como era a situação em 1988 e o que a CF contribuiu para o
futuro do Brasil no que toca aos índios, quilombolas, populações tradicionais,
essa diversidade de grupos sociais?
A Constituição é um marco da democratização e do auto reconhecimento do
Brasil como um país diverso. Resgata os passivos históricos do país e acolhe a
todos como parte do seu futuro, inclusive os primeiros povos da terra e os que
foram traficados desde a África, assim como os direitos de todos ao meio
ambiente sadio, aos recursos naturais e às suas próprias expressões culturais.
Foi uma referência exemplar para outras Constituições do continente,
construídas nos processos de democratização dos países vizinhos.
E por que esse retrocesso contra a CF agora, o que mudou? Foi a
sociedade que deixou de querer proteger os índios ou foram os ruralistas que
ganharam poder e usam isso contra a sociedade?
Há uma distorção da representação política, com um peso desproporcional dos
ruralistas no Legislativo, para um país majoritariamente urbano e que apoia os
direitos coletivos e difusos. Esse é um dos temas que uma reforma política
democrática terá que enfrentar. Nos últimos 25 anos as fronteiras
territoriais internas se fecharam. Houve um aumento importante na destinação
das terras públicas federais, incluindo o reconhecimento de Terras Indígenas, a
criação de Unidades de Conservação e outras áreas especiais, além do processo
de privatização, com o aumento exponencial da agropecuária. Ruralistas
brasileiros passaram a operar em terras de países vizinhos. E agora os
interesses expansionistas dos ruralistas querem crescer sobre essas terras da
União com destinações especiais e coletivas. Finalmente, há uma conjuntura
política muito desfavorável. O atual Congresso é dirigido por forças
reacionárias e a presidente está refém de uma equação de governabilidade
conservadora.
O que essas mudanças na Constituição significam para o futuro? Mais
conflitos?
O caminho para superar ou reduzir conflitos é a demarcação das terras. Paralisar
demarcações significa perenizar conflitos. Rever demarcações significa reabrir
conflitos já superados. Ao romper o pacto constitucional para não demarcar, o
Congresso/governo deixaria esses povos em permanente situação de conflito
com a sociedade/estado nacional, como ocorria no tempo da ditadura. Agora, o
prejuízo político para o país seria maior do que na época, pois não haveria
como censurar a imprensa e os movimentos indígenas.
O que pode acontecer, por exemplo, se uma lei por fim ao processo de
demarcação de terras sendo que ainda há tantas terras a serem demarcadas?
Mais mortos e feridos, mais sofrimento das partes, mais insegurança
jurídica, menos produção, mais desgaste para a imagem do país. Com mais de
duzentas pendências, os grupos interessados passariam a ocupar o Congresso de
forma intermitente, já que os processos ficariam paralisados lá. É bom os
parlamentares irem se acostumando com essas mobilizações indígenas, como a que
ocorrerá no início de outubro, pois elas passariam a compor o cotidiano de
trabalho deles.
Quais são essas pendências territoriais na questão indígena?
Hoje existem 128 Terras Indígenas em estudos de identificação, 35
Identificadas e aprovadas pela Funai sem portaria declaratória do ministro da
Justiça e 66 declaradas pelo ministro e ainda sem decreto de homologação.
Ou seja 228 no total.
Quais as semelhanças entre a atual movimentação contrária aos
direitos indígenas e quilombolas e as mudanças de cunho ambiental na
legislação, como no Código Florestal?
Com a destruição do Código Florestal brasileiro, no ano passado, os
proprietários de terra se desincumbiram de praticamente todas as obrigações
legais relativas à função socioambiental de suas propriedades. Agora, avançam
para além das suas propriedades, com o intuito de abrir espaços para a expansão
da fronteira agropecuária através do grilo (ainda que legalizado) das terras
públicas. Não se trata de prejudicar os índios, simplesmente, mas o Brasil como
um todo: avançar sobre terras indígenas, quilombos, parques nacionais, reservas
extrativistas, assentamentos da reforma agrária e o que mais houver para se
patrimonilizar.
Qual o recado para quem não sabe o que esta em jogo nessas duas
próximas semanas, mora nas grandes cidades, nunca viu um índio na vida mas
simpatiza com os povos indígenas e esta preocupado? O que as pessoas podem
fazer?
Haverá mobilização em Brasília (especialmente na tarde de
terça-feira, 01/10), em São Paulo (quarta-feira, 02/10, em frente ao MASP), em
Belém (também quarta-feira, local a confirmar) e em outras cidades e regiões.
Participe!
Lembre-se, também, que as mesmas elites que massacraram os índios,
historicamente, e querem voltar a fazê-lo agora, foram responsáveis pela
constituição de uma das sociedades mais desiguais do mundo contemporâneo, com
uma das maiores concentrações fundiárias ainda existentes.
Não se iluda: por trás da destituição dos direitos indígenas, viria/virá a
destituição dos seus direitos também!
Reportagem de Felipe Milanez
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