Médicos ressaltam que, sem garantias de boas condições de trabalho, nem os estrangeiros vão encarar viver no interior e nas periferias.
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As condições de trabalho no interior do País, na grande maioria dos municípios, exige jogo de cintura dos médicos que decidem atender à população nesses locais e paciência de quem precisa de atendimento.
A ausência de infraestrutura adequada a todos os níveis de complexidade de atendimento – e até nos mais básicos, muitas vezes – é um dos entraves para a interiorização dos médicos. Para Gabriel Ugarte, médico boliviano que atua no País, isso também espantará os estrangeiros.
Ugarte, que nasceu na Bolívia e se naturalizou brasileiro, é um crítico duro das condições de trabalho oferecidas aos médicos, especialmente do interior. Morador da cidade de Ji-Paraná, em Rondônia, garante que a infraestrutura das unidades de saúde é uma “vergonha”.
“Ji-Paraná é uma cidade grande, que tem bancos, internet, supermercados, lojas. Mas não temos condição nenhuma pra trabalhar. Os consultórios são sujos, não têm mesas decentes, faltam medicamentos. Não temos nada de nada”, desabafa.
Na opinião do médico, que atua também na cidade de Cacoal, a primeira providência que deveria ser tomada pelos governantes para resolver as dificuldades de oferta de saúde no Brasil é investir na infraestrutura hospitalar e dos postos de saúde.
“Trazer médico para cá não vai resolver o problema. Não precisamos de mais médicos, precisamos de condição de trabalho. Os políticos, em campanha, prometem tudo. Depois, se esquecem”, critica o cardiologista de 56 anos, que revalidou seu diploma há 13 anos.
Carlos Vital, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), ressalta que não é só a falta de infraestrutura de saúde que afasta os médicos dos municípios do interior do país. Muitas vezes, a estrutura de vida na cidade é que espanta os profissionais.
“Há mutirões de prefeitos para contratar médicos para um lugar, muitas vezes, sem condição de trabalho, que não tem sequer tratamento de esgoto. Esse tipo de condição de saneamento seria mais eficaz para a saúde da população local do que a simples presença do médico”, diz.
O conselheiro defende que, sem garantia de condições para realizar um bom trabalho, nenhuma das medidas anunciadas pelo governo para distribuir melhor os médicos brasileiros adiantará. “O governo federal precisa assumir tudo isso”, pondera.
Recursos garantidos
O Ministério da Saúde garante que a política de atração de médicos para o interior – brasileiros ou estrangeiros – será atrelada à melhoria da infraestrutura hospitalar. Apenas os municípios que estiverem investindo em melhorias nas unidades de saúde receberão médicos.
Serão investidos R$ 7,4 bilhões até 2015. Do total, R$ 2,8 bilhões serão destinados a obras em 16 mil postos de saúde e na compra de equipamentos para 5 mil deles. Com outros R$ 3,2 bilhões, 818 hospitais passarão para obras e 2,5 mil receberão novos equipamentos. E 877 unidades de pronto atendimento (UPAs) vão ficar com R$ 1,4 bilhão para financiar obras.
Outros R$ 100 milhões serão gastos em reformas nos hospitais que aderirem ao programa de expansão das vagas em cursos de residência. Cada hospital receberá cerca de R$ 200 mil para custear ampliações e aquisição de equipamentos e uma ajuda mensal por cada vaga criada, que vai variar entre R$ 3 mil e R$ 8 mil.
“Vamos nos reunir com secretários estaduais e municipais de saúde para mapear como acelerar a execução de recursos nas obras contratadas e ampliar a adesão dos hospitais filantrópicos aos programas”, diz o ministro da Saúde, Alexandre Padilha. O governo federal criou um programa para trocar dívidas das instituições filantrópicas por mais procedimentos, como exames, consultas e cirurgias.
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Antônio Carlos Figueiredo Nardi, presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), diz que a entidade está ajudando os prefeitos a aderirem às oportunidades de financiamento do governo federal. “Estamos trabalhando para dar condições concretas para o exercício profissional na rede publica de saúde”, garante.
Norte e Nordeste são os que mais sofrem com falta de médicos
Em Marechal Thaumaturgo, no Acre, quatro médicos “cadastrados” – o que significa com registro no Conselho Regional de Medicina do Estado – se revezam no atendimento da população. Eles contam com o apoio de mais quatro médicos estrangeiros, que não têm o diploma validado ainda, para auxiliá-los no atendimento dos 15 mil habitantes do município. Os estrangeiros são os únicos que moram na cidade. Os outros vivem em Rio Branco.
Distante 700 quilômetros da capital, o município conta com um hospital, mas a estrutura não permite atendimentos de média complexidade. Nesses casos, é preciso sair da cidade, de avião ou de barco. As dificuldades vividas pelos moradores de Marechal refletem o que há por trás das estatísticas disponíveis sobre a distribuição dos médicos em todo o país. A desigualdade de oferta e atendimento ocorre em todo lugar.
Apenas 4% dos profissionais brasileiros, registrados nos conselhos, estão na região Norte. A proporção é de 0,9 médico por 1 mil habitantes na região. Para o Ministério da Saúde, a relação é muito baixa. Está abaixo da média nacional, de 1,8 médico por 1 mil habitantes, também considerada aquém do necessário para o país. O número é inferior ao do Reino Unido (2,7), cujo sistema de saúde é universal, Argentina (3,2) e Uruguai (3,7).
Dos cinco estados brasileiros com menos de 1 médico para atender cada 1 mil habitantes, três estão na região Norte e dois no Nordeste. A pior situação é a do Maranhão, com relação 0,58 médico por 1 mil habitantes. Do total, 21 Estados estão abaixo da média nacional usada pelo governo, cujo ano de referência é 2012. O Distrito Federal tem a maior proporção de médicos por habitante (3,46), segundo o levantamento.
A referência é a mais utilizada para definir a quantidade de médicos no país. Apesar de revelar desigualdades, ela ainda esconde diferenças maiores dos municípios. Em uma mesma cidade, a realidade das periferias, áreas pobres e de conflitos não é a mesma das demais em termos de oferta de médicos. Nessas regiões, os médicos são ainda mais escassos. O mapa do Estado de São Paulo ilustra bem a situação: 57,6% desses profissionais estão na região metropolitana.
Carências
De acordo com o Ministério da Saúde, dos 360 mil médicos em atividade no Brasil em 2012, 206 mil trabalhavam na região Sudeste. Um estudo da Estação de Pesquisas de Sinais de Mercado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre a escassez de médicos no país mostra que cerca de 1,3 mil dos 5.565 municípios brasileiros possuem um médico para atender cada 3 mil habitantes. Do total de cidades, 7% não possuem médicos que morem nesses locais.
E a projeção do governo é de que o déficit de médicos aumente. Marechal Thaumaturgo é um dos 1.568 que pediram médicos pelo Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab) e não conseguiram. Em todo o país, 55% das 2.867 cidades que pediram os profissionais não receberem nenhum. As primeiras seleções do programa, a maior aposta do governo para a interiorização de médicos, abriram 13 mil vagas e 3,6 mil foram preenchidas.
Além da demanda do programa que financia profissionais com bolsas de R$ 8 mil e concede bônus de 10% em programas de residência depois aos participantes, o Ministério da Saúde estima criar 35 mil postos de trabalho (confira tabela) para médicos até 2015. As vagas surgirão em hospitais, unidades básicas de saúde e de pronto-atendimento.
“Ainda formamos poucos profissionais para o tamanho das nossas carências e diferentes pesquisas mostram isso. Somente na medicina surgem mais empregos que profissionais. Há um grande desafio há ser resolvido e não é uma política isolada de saúde que vai resolver, mas há essa necessidade de médicos”, analisa o coordenador da Estação de Pesquisas de Sinais de Mercado da Universidade Federal de Minas Gerais, Sabado Girardi.
Antônio Carlos Figueiredo Nardi, presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), reforça o coro da falta de profissionais na maioria das cidades do país. Secretário em Maringá, município do Paraná que possui um dos melhores índices de qualidade de vida do Brasil, ele conta que nove equipes de saúde da família de lá estão sem médicos. Dos 16 profissionais aprovados no último concurso, apenas cinco assumiram a vaga.
“Essa é a minha realidade, em uma cidade grande, planejada. As dificuldades no interior são muito maiores. A realidade é que faltam médicos para atender no serviço público e na atenção básica de saúde. Por isso, defendo a vinda de estrangeiros para cá”, desabafa. O Conselho Federal de Medicina discorda. Para a entidade, a carreira precisa ser reformulada, garantindo estímulos para que o médico vá para essas regiões carentes.
Aloizio Tibiriçá, vice-presidente do CFM, diz que o Estado precisa assumir a responsabilidade de suprir a carência de profissionais e condições de trabalho nas regiões mais inóspitas. “Seria preciso um incentivo público para que se fixassem médicos nesses locais, com estrutura e equipes adequadas, garantia de formação continuada nesses locais, que, muitas vezes, são como praças de guerra. Isso não é atrativo, é preciso ter condições de trabalho”, critica.
Os dados mais recentes do CFM, de 2013, já registram 387 mil médicos e uma relação de 2 médicos por 1 mil habitantes no país. O governo não usa os números porque diverge das metodologias usadas na contagem.
Medidas polêmicas
Uma das propostas mais polêmicas anunciadas pelo governo para suprir a falta de médicos nas regiões de interior e periferia é a atração de médicos estrangeiros. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, garante que a seleção só será feita para vagas que os brasileiros não quiserem assumir. Cerca de 10 mil postos devem ser oferecidos. Elias de Souza Moura, obstetra acreano, é contra a medida. “É um paliativo”, diz.
Morador da cidade de Sena Madureira, distante 144 km da capital do Acre, ele trabalha há 27 anos na rede pública do município. “As dificuldades aqui são grandes, de distância e acesso aos municípios. Temos uma faculdade que forma 40 médicos por ano e nenhum vai para o interior”, afirma. Arinaldo Leal, presidente da Associação Piauense de Municípios (Appm), também defende que as políticas sejam mais abrangentes.
“Não é só uma questão de ter médico. É tudo muito complexo. O SUS paga pouco aos profissionais, eles precisam de infraestrutura adequada e precisamos pensar como fazer essas pessoas viverem longe dos grandes centros”, comenta.
Keyser Alan dos Santos Bastos, secretário municipal de saúde do município acreano de Marechal Thaumaturgo, de 37 anos, não vê possibilidades de solução para os pequenos municípios sem os estrangeiros. Ele lembra que só os peruanos que atuam em sua cidade aceitam morar lá. Os outros se revezam a cada semana no atendimento da cidade, que ainda possui duas unidades de saúde na área rural.
Para chegar lá, é necessária uma viagem de um dia de barco. Os médicos só passam lá uma semana por mês. No resto do tempo, um enfermeiro e um técnico atendem à população. “Outros profissionais, como enfermeiros e psicólogos vão para o interior. Por que o médico não? Eles querem ficar nos grandes centros porque sabem que a vida é melhor. A gente abdica de muita coisa para ficar no interior”, comenta.
Reportagem de Priscilla Borges
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