As ossadas de vítimas da ditadura encontradas em
uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus (zona norte de São
Paulo), aberta em 4 de setembro de 1990, foram submetidas ao descaso do Estado.
De acordo com denúncia feita pela Comissão da Verdade paulista, que tenta
identificar os corpos de cerca de 15 presos políticos, as ossadas, quando sob cuidados
das duas universidades mais conceituadas do Estado, não passaram pelo
processo correto de estudos de identificação e, posteriormente, foram
armazenadas de maneira inadequada, em locais “sujos e com fungos.”
Em
audiência pública realizada no dia 19, a Comissão da Verdade refez a história
das ossadas. Após serem encontradas, elas foram levadas para estudos na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob coordenação do legista
Fortunato Badan Palhares. Como havia (e ainda há) uma falta de profissionais
capazes de identificar corpos no Brasil, a Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos solicitou, ainda em 1990, a ação de um grupo de
antropologia forense argentina para auxiliar no processo. O pedido
foi negado pela Unicamp, que assumiu sozinha os estudos iniciais. Nenhum
corpo foi identificado e, mais tarde, os restos mortais foram encaminhadas para
o Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (USP), na época dirigido por Daniel Romero Muñoz.
Só
em 2013 a identificação começou de verdade, quando tiveram início os
trabalhos do Equipo Argentino de Antropologia Forense (EAAF), agora
responsável pelas ossadas. “Vimos uma metodologia equivocada por parte da
universidade”, diz a antropóloga argentina Patrícia Bernardi,
integrante do EAAF. Segundo ela os estudos realizados no Brasil até então
se valeram de “metodologia escassa, confusa e que não chega a resultados
conclusivos. São estudos meramente descritivos.” Ainda segundo a especialista
argentina, “as fichas [de identificação] não se mostram confiáveis, então
o trabalho deve ser feito do zero”.
Um dos
exemplos da bagunça promovida pelo Estado e entregue ao EAAF é a busca pela
identificação do militante Hiroaki Torigoi. Havia uma identificação de que
sua ossada estaria em um grupo previamente separado, a partir de
características compatíveis com o corpo de Torigoi. Os argentinos descobriram
que, na verdade, dentro do material estava 22 ossadas diferentes, sendo que
quatro delas pertenciam ao sexo feminino e outras 14 eram de adultos com mais
de 35 anos. Torigoi foi morto aos 27. Isso já eliminaria do grupo 18 ossadas,
que de forma alguma poderiam ser de Torigoi. “A pré-seleção feita pelos
pesquisadores estava completamente equivocada”, constatou o grupo. Exames de
DNA foram realizados nas ossadas que continham características semelhantes ao
de Torigoi, mas nenhum foi compatível.
“Foram
cometidos erros primários, como não separar os corpos de homens e de mulheres”,
diz Amélia Telles, integrante da comissão de familiares dos desaparecidos.
“Nós estamos vendo que há uma negligência por parte do Estado e de suas
instituições, que já perdura bastante tempo”, diz.
Dados de
livros de registro apontam que pelo menos seis corpos de ex-militantes mortos
pela ditadura estão no grupo de mais de mil ossadas, mas a Comissão de
Familiares acredita que o número possa chegar a quinze, já que muitos corpos
eram enterrados com nomes falsos para dificultar a identificação.
Segundo Amélia Telles, no atestado de óbito, os presos políticos eram
identificados por uma letra T. “Era a forma como a repressão identificava os
presos políticos, o T era de terrorista. Já era uma senha para que o próprio
funcionário, tanto do Instituto Médico Legal quanto do serviço funerário,
ocultasse o cadáver”.
Até aqui,
a equipe argentina conseguiu identificar os corpos de três ex-militantes.
São os de Dênis Casemiro, assassinado em 1971, no Dops de São Paulo;
Frederico Eduardo Mayr, sequestrado pela Operação Bandeirante em 24 de
fevereiro de 1972; e Flavio de Carvalho Molina, morto aos 24 anos, em 1971, em
São Paulo. As outras mais de mil ossadas continuarão sendo analisadas, mas
não será necessário fazer exame de DNA uma a uma, apenas nas que se enquadrarem
dentro das características dos militantes mortos. A continuação depende da
manutenção do financiamento feito pela Associação Brasileira de Anistiados
Políticos.
Contatada,
a Unicamp disse que o legista Fortunato Badan Palhares não trabalha mais na
Faculdade de Ciências Médicas e que, portanto, não poderia prestar
esclarecimentos sobre o assunto. A USP declarou que o responsável pelo
departamento estava em um evento fora de São Paulo e mais tarde entraria em
contato.
Reportagem de Paloma Rodrigues

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