A Igreja Católica difundiu na última terça-feira um agressivo documento no qual denunciou pressões contra a liberdade de expressão e a independência do Poder Judiciário e
incluiu pronunciamentos contra o caudilhismo, ao aprofundamento dos conflitos
como forma de construção democrática, a insegurança, as cumplicidades com o
narcotráfico, a situação dos jovens que não estudam nem trabalham e sua
politização. Também criticou as políticas sociais de transferência direta de
recursos aos sectores mais vulneráveis.
Não é habitual que os documentos
eclesiásticos natalinos se tornem públicos um mês antes da data. Assim, estas
“Reflexões dos bispos ao aproximarmos do Natal” parecem menos pensadas para
celebrar o nascimento de Cristo do que o vencimento da medida liminar que vem
adiando a aplicação plena da Lei de Serviços de Comunicação
Audiovisual.
Outra particularidade é que o documento não foi discutido
nem redigido pelos oitenta prelados que compõem a Assembleia Plenária. Esse
corpo secionou há três semanas e seu tempo de discussão se dedicou a elaborar a
resposta ao grupo de Cristãos para o Terceiro Milênio. Esses laicos, entre os
quais estão o ex-embaixador Hernán Patiño Mayer, o deputado Felipe Solá, a
defensora pública portenha Alicia Pierini e a socióloga Ana Cafiero, reclamaram
pelo silêncio da Igreja diante das provocativas declarações do ex-ditador Jorge
Videla a quem, apesar de seus crimes, não foi vedado o acesso a Eucaristia.
O documento elaborado no dia 8 de novembro, o mesmo dia da manifestação
opositora no Obelisco, negou uma vez mais a documentada cumplicidade do
Episcopado com a ditadura militar. A redação de um documento político de
atualidade foi delegada então a uma comissão especial. Desde que o arcebispo de
Santa Fé, José María Arancedo, substituiu na presidência do Episcopado o de
Buenos Aires Jorge Bergoglio, os documentos eclesiásticos haviam diminuído sua
hostilidade ao governo nacional e se concentravam em temas mais gerais de
interesse para a Igreja, que se arroga a tutora nacional em questões éticas e
sexuais.
Neste caso, porém, reapareceram os temas políticos que
caracterizaram a gestão e a pena de Bergoglio. O documento levará a assinatura
coletiva da 104ª Assembleia Plenária. Arancedo preside a Conferência Episcopal e
o acompanham o bispo de Neuquén, Virginio Bressanelli, como vice-presidente 1º,
o arcebispo de Salta, Mario Antonio Cargnello, como vice-presidente 2º, e o
bispo auxiliar de Buenos Aires, Enrique Eguía Seguí, como secretário. Bergoglio
continua sendo um dos vinte membros da Comissão Permanente, devido a seu cargo
como arcebispo da Capital Federal.
“Depois de quase trinta anos de
democracia, os argentinos correm o perigo de se dividirem novamente em grupos
irreconciliáveis. Estende-se o temor de que se acentuem estas divisões e se
exerçam pressões que inibam a livre expressão e a participação de todos na vida
cívica”, dirão os bispos. “Todos os habitantes de nossa pátria necessitam
sentirem-se respaldados por uma direção que não pense só em seus próprios
interesses, mas que se preocupe prioritariamente com o bem comum.” Sem a menor
referência à crise internacional e às medidas adotadas pelo governo nacional
para impedir sua repercussão sobre o nível de emprego e as remunerações, os
hierarcas católicos reclamarão “pela dignidade de nossos irmãos mais pobres em
sua vida pessoal e familiar, para que sejam protagonistas de seu próprio
desenvolvimento integral. A educação e o trabalho continuam sendo os
instrumentos que permitem às pessoas e às comunidades serem artífices de seu
próprio destino”. Fazia muito tempo que o Episcopado não questionava as
políticas de transferência direta de recursos, como a Asignación Universal
por Hijo (algo como o programa “bolsa família” brasileiro), que vários de
seus membros elogiaram.
Em um tópico recorrente nos documentos
eclesiásticos durante a gestão de Bergoglio e habitual nos pronunciamentos de
meios de comunicação e dirigentes políticos da oposição, os bispos pedirão a
Cristo “Concede-nos a sabedoria do diálogo” e dirão que a democracia não se
constrói aprofundando os conflitos que existem em toda a sociedade, mas mediante
os ideais da amizade social. Uma das sombras que os prelados vêm levantar-se
contra “uma vigência mais plena da ordem democrática” é a do “excessivo
caudilhismo, que atenta contra o desenvolvimento harmônico das instituições,
acentua sua degeneração e menospreza a autonomia de cada um dos poderes do
estado, tanto na ordem nacional como provincial. Isto é particularmente delicado
quando se trata da independência do Poder Judiciário”.
O documento
também incluiu uma referência ao federalismo e à república. Fez com uma
citação da Oração pela Pátria, que o Episcopado difundiu durante a crise do fim
do século, na qual dizia que “nos sentimos feridos e angustiados”. O texto agregou que o anseio dos bispos está contido na
Constituição Nacional. “Queremos ser uma nação baseada efetivamente em um
sistema republicano, representativo e federal.” Também não faltará o tópico
clássico da reconciliação, que os bispos consideram como uma dívida pendente.
“Se faz cada vez mais necessário gerar contextos de encontro, de diálogo, de
comunhão fraterna que nos permitam reconhecermos e tratarmos como irmãos,
superando o ódio e construindo a paz”, dirá. Esse é o tema em debate entre os
bispos e os Cristãos para o Terceiro Milênio, que em sua segunda carta pediram
que os bispos “façam cessar o público pecado de escândalo que se configura hoje,
quando um criminoso convicto e confesso de delitos de lesa humanidade, sem
arrepender-se nem manifestar vontade alguma de reparação das atrocidades
cometidas, tem acesso ao sacramento da Eucaristia”.
Segundo os bispos, o
país padece uma crise moral e cultural. Seu texto dirá que “a base de todos os
direitos humanos” é a dignidade da vida desde a concepção até seu término
natural e que o matrimônio entre varão e mulher, “anterior ao Estado, é a base
de toda a sociedade e nada pode substituí-lo”. Como para a doutrina católica os
pais são os primeiros responsáveis pela educação de seus filhos, o sistema
educativo não deve impor-lhes “conteúdos contrários a suas convicções morais e
religiosas”. O sistema educativo deve melhorar, de modo que seus principais
beneficiários sejam os mais pobres. “A necessária preparação para a vida cívica
de crianças e jovens deve excluir a politização prematura e partidária dos
alunos.” Há uma enorme quantidade de jovens que não estudam nem trabalham e esta
é uma desafiante hipoteca social. Ao referir-se ao que chamam “a proliferação do
delito e da conseguinte insegurança”, os bispos as atribuem ao “crescimento do
crime do narcotráfico e à rede de cumplicidades que o sustenta”.
Reportagem de Horácio Verbitsky
fonte:http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21352&boletim_id=1455&componente_id=24636
foto:blogdojeriel.com.br
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