20/06/2012

Marcelino: índio salvadorenho que sobreviveu à matança de 1932 hoje vive no esquecimento


Com 103 anos, um dos últimos representantes dos pipil lembra os dias de terror nas montanhas de El Salvador.


Marcelino (foto acima) é um sobrevivente da matança de indígenas e camponeses em El Salvador. Em 1932, um levante popular foi massacrado pelos militares, deixando milhares de mortos e cicatrizes profundas no país, que décadas depois mergulharia em uma guerra civil. Hoje, o centenário Marcelino, nascido em 1908, enfrenta a miséria, a doença e o esquecimento, apesar de ser um patrimônio nacional.

Pode-se ouvir o canto dos galos distante durante todo o percurso de terra que conduz à casa de barro e pedra, onde vive o ancião com suas recordações. A humilde moradia encontra-se em meio às recônditas montanhas do município de Tacuba, 114 quilômetros a oeste da capital, San Salvador. Marcelino Galicia Fabián é do povo pipil. O rosto está tolhido pelo sol. De baixa estatura, o centenário sobrevivente se encurvou com o passar do tempo, no entanto, sua mente se mantém lúcida ao recordar da vida.

Ele vive solitário no encalço das montanhas, afastado do povoado de Tacuba, acometido por uma insuficiência renal. “Chelino”, como o chamam os amigos, foi casado apenas uma vez. Criou três filhos, mas dois morreram jovens, e o que sobrou o visita de vez em quando.

Marcelino é um dos poucos homens que sobreviveram ao genocídio de sua etnia em janeiro de 1932, quando o então presidente de El Salvador, o ditador General Maximiliano Hernández Martínez, assassinou cerca de 10 mil camponeses e indígenas acusados de serem “bolcheviques”. No entanto, apesar da participação ativa do PCS (Partido Comunista Salvadorenho) nas rebeliões, a grande maioria era formada por cidadãos sem filiação alguma, cansados da desigualdade social e da espoliação das terras para latifundiários locais.

Hoje, Marcelino dá o testemunho daquela época sangrenta graças à astúcia da avó materna, que o escondeu durante as duas semanas de matança, refugiando-se em cavernas para escapar das operações do exército. “Passamos cerca de 15 dias comendo apenas bananas e camarões. Na época, havia um partido que não queria o regime militar e por isso eles os matavam”, relatou ao Opera Mundi, em referência ao PCS.

A voz de Marcelino faz uma longa pausa. Ele relembra os mortos; durante a chacina, muitos familiares, amigos e vizinhos perderam a vida de forma atroz. “Os arrastavam como se fossem ‘chuchos’ (cachorros). Dava pena ver como em seis covas enfiavam todas as pessoas do povoado. A matança durou por volta de oito dias. Mataram vários da minha família, outros morreram de fome e de sede onde estavam escondidos”, lamentou.

Após o amargo episódio, Marcelino se estabeleceu em uma das onze comunidades do município de Tacuba, onde vive seus dias cheios de solidão.

Legado

Após o massacre, qualquer indício de indigenismo tornou-se sinônimo de morte. Em El Salvador, os índios foram quase totalmente exterminados pelas mãos do ditador Martínez, que ostentou o poder desde 1931 até 1944. O último censo de população e habitação de El Salvador, realizado em 2007, mostrou que, do total de 5,7 milhões de habitantes, 86% são mestiços, 13% são brancos e 1% são indígenas. Do total da população, somente cerca de 200 pessoas falam náhuat (língua dos pipil), segundo o estudo. 

“Quando o General Martínez introduziu as tropas, a guarda andava pelas comunidades em comitivas e se alguém falasse em náhuat respondiam: ‘O que está dizendo, filho da puta?’ Nos espancavam e diziam: ‘fale direito, que só mudo não sabe falar’”, contou Marcelino.

Segundo ele, muitos dos habitantes indígenas da época decidiram abandonar costumes, vestimentas, a língua ancestral e os nomes indígenas por temerem represálias. Pouco a pouco, o legado cultural salvadorenho desapareceu. A cabana de Marcelino é um dos últimos baluartes.

Após décadas de exclusão e marginalidade, o presidente salvadorenho, Mauricio Funes, pediu em 12 de outubro de 2010 – durante a celebração do dia da hispanidade – pela primeira vez perdão em nome do Estado pelas violações dos direitos humanos a este grupo étnico.

Enfrentando a pobreza

Marcelino passa os dias entre a miséria e a luta contra uma doença renal, que lhe causa dores e não permite que urine normalmente. Ele conta que o sistema médico local não o ajudou, que os médicos receitaram os remédios errados e que, agora, “está esperando a morte”.

Dentro de sua cabana, o ambiente é sombreado, as paredes empoeiradas. O piso de terra sustenta os pés envelhecidos de “Chelino” e a fumaça das chamas onde cozinha a comida se espalha livremente pelo interior.

A dieta diária é básica: milho e feijão, que consegue quando vende uma rede por cinco dólares ou uma das flautas de bambu que produz para as bandas de música que animam as festas populares da região, no valor de um dólar. Geralmente, vive de presentes de amigos ou dos “milagres”.

Completou 103 anos de resistência.



Reportagem e foto de Paula Rosales 

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