03/08/2011

Moradores da Espanha oferecem seus órgãos na web para transplantes no exterior



O "negócio" é proibido pelo Código Penal, mas isto não impede o comércio de órgãos na Espanha. Para quem pensava que isso só acontecia nos países do Terceiro Mundo...




"Vendo meu rim, faço isso pelo bem-estar de minha filha." Essa é a oferta que Luis (nome fictício) publicou no site Campusanuncios. O colombiano de 23 anos conta por telefone que chegou ao País Basco há cinco em busca de uma oportunidade na construção, mas a bolha imobiliária estourou e, ao perder seu emprego, também ficou sem visto de residência.
"Estou pagando minhas dívidas, mas com atraso", lamenta. "Não tenho para a passagem de volta, nem posso me manter na Espanha. Preciso de dinheiro", explica como uma litania que repetiu mil vezes. Seu rim está à venda há três meses, durante os quais recebeu ofertas de vários interessados. Nenhum lhe enviou os 8 mil euros que pede para arrematar essa venda completamente ilegal na Espanha. Ele prefere chamá-la de "uma doação que exige gratificação".
Não é o único que põe um preço em seus órgãos. Um compatriota dele, Pablo Andrés, conta uma situação limite: "Preciso de US$ 100 mil [65 mil euros] para a operação de minha mãe. Esse é o preço que cobro". Ele se define como um homem saudável e envia por e-mail exames de sangue para confirmar. Oferece um encontro ao suposto comprador para tratar do assunto pessoalmente em sua casa em Vinaroz (Valência), mas surgem dúvidas: "Minha mulher não está de acordo. Diz que posso adoecer". Ela tem razão. A operação apresenta os riscos de qualquer cirurgia com anestesia: problemas respiratórios, hemorragias e infecções.
A Espanha já tem 32 doadores renais por milhão de habitantes, segundo o Registro Mundial de Transplantes. É o líder mundial, mas a cifra fica pequena quando se leva em conta que a lista de espera é de 5 mil pessoas. Nenhum país tem doadores suficientes. Há mais de 1,6 milhão de pessoas no mundo que se submetem a diálise, mas só se realizam 67 mil transplantes por ano. Isto gerou uma demanda crescente de pacientes com recursos, dispostos a conseguir um órgão. O preço médio de um rim no mercado negro é de 120 mil euros, segundo o relatório Tráfico de Órgãos da ONU.
A Declaração de Istambul tenta frear essa variante do tráfico de seres humanos, pedindo aos governos que legislem a respeito. Mais de 78 países o fizeram, entre eles a Espanha. Tanto o Código Penal quanto a diretriz do Parlamento Europeu sobre transplantes estabelecem que as doações se fundamentam nos princípios de voluntariedade, gratuidade, finalidade terapêutica e anonimato. De fato, a reforma do Código Penal esclarece e identifica pela primeira vez a comercialização de órgãos como crime.
Isto não impediu a associação de consumidores Facua de denunciar em 2009 anúncios de espanhóis que ofereciam rins em troca de dinheiro [entre 15 mil e 100 mil euros] em Madri, Castellón, Málaga e Sevilha. "É fácil encontrar ofertas desse tipo na rede, e a crise só fez aumentar o problema, mas as autoridades continuam sem solucioná-los", queixa-se o porta-voz, Rubén Sánchez.
Um capitão da polícia judiciária da Guarda Civil explica que a lei "proíbe fazer publicidade sobre a necessidade de um órgão ou sobre sua disponibilidade, oferecendo ou buscando algum tipo de gratificação ou remuneração em troca". Os infratores enfrentam penas de até 12 anos de prisão, embora na prática, admite o capitão, seja muito difícil processá-los. "O Código Penal salienta que só é crime negociar órgãos alheios. Se alguém põe à venda seu próprio rim, comete apenas uma infração administrativa. Também não é simples averiguar se o intercâmbio ocorreu na Espanha e depende de nossa jurisprudência, já que a maioria dos anúncios foi colocada por estrangeiros em sites radicados em outros países", argumenta. Os administradores dos portais alegam que é impossível controlar o fluxo de mensagens.
Apesar do argumento do capitão da Guarda Civil, também há espanhóis que optaram por esse comércio ilegal. Como Manuel (nome suposto), que vive em Navarra e pede uma compensação econômica por seu rim no portal Casi Nuevo, onde também são publicados anúncios de "barrigas de aluguel". "Não quero enganos, sei o que estou arriscando", diz por telefone.
A Organização Nacional de Transplantes (ONT) não possui uma unidade para processar esses crimes. No entanto, seu diretor, Rafael Matesanz, está convencido de que o negócio é inviável na Espanha. "Nenhum facultativo deste país vai extrair um órgão comprado", afirma.
Talvez por isso, os vendedores de órgãos oferecem vias alternativas: "Tirei tempo para me instruir nos aspectos legais, e o melhor é fazê-lo na Venezuela", propõe por correio eletrônico Ricardo Antor, 48 anos. Ele explica ao suposto comprador que em seu país há "formas de convencer os médicos". "Se quisermos que autorizem o procedimento, temos de nos conhecer a fundo para passar na entrevista. Aqui se exige um laço familiar ou uma amizade de mais de 20 anos." Antor planeja a entrevista médica como a de um casamento fraudulento: "A imagem que passarmos é importante. Você está tratando com uma pessoa madura, um universitário de classe média".
O pagamento também é estipulado. O comprador deve se encarregar dos testes de compatibilidade sanguínea e pré-operatórios, o custo da intervenção cirúrgica, a hospitalização e os deslocamentos. "Você fará o depósito quando eu me hospitalizar, mas com tempo suficiente para que possa verificava antes que me operem", exige o venezuelano. Em troca oferece supostas garantias a seu interlocutor: "Você pode enviar alguém de confiança para ficar comigo e controlar que tudo siga conforme o combinado". Também pede um documento assinado que certifique um acordo, um assunto ilegal e portanto não reclamável.
Matesanz crê que a materialização dessa negociação é "ficção-científica" na Espanha, já que receptor e doador não podem se conhecer para que seja autorizado o transplante de um órgão de um bom samaritano - doador altruísta, sem parentesco com o paciente. Os juízes entrevistam os candidatos e recusam aqueles cujas condições econômicas possam ser suspeitas de fraude. "Nosso sistema é o melhor recurso imunológico contra o vírus do desespero, que pode levar alguém a tentar pagar por uma esperança de vida", conclui.
Mercado legal contra o tráfico
Alguns teóricos, como o economista Alex Tabarrok, assessor da LifeSharers.com, defendem a adoção de incentivos para aumentar a oferta de órgãos. "Se as vendas são voluntárias, há pouco que objetar moralmente, porque tanto o comprador quanto o vendedor se beneficiam. Em um mercado negro, a transparência é pequena, os doadores estão menos protegidos diante da desinformação e a fraude, e é possível que não recebam os cuidados adequados depois da operação", diz Tabarrok em "The Meat Market" [O açougue], artigo publicado em "The Wall Street Journal".
John Harris, diretor do Instituto para a Ciência, Ética e Inovação da Universidade de Manchester (Inglaterra), reabriu a discussão este ano com declarações para o jornal "The Independent" onde expôs várias propostas para a criação de um mercado de órgãos regulamentado. Harris opina que a sociedade acabaria aceitando a venda por pragmatismo: "Está na hora de considerá-lo, porque o Reino Unido, para sua vergonha, permitiu uma escassez desnecessária de órgãos durante 30 anos, enquanto milhares de pessoas morriam esperando um transplante".
Rafael Matesanz, diretor da Organização Nacional de Transplantes, está em total desacordo e considera que esse plano colocaria os seres humanos à altura dos animais, no balcão de carne. "Não existe um debate generalizado sobre essa questão, só o mantêm vivo indivíduos interessados em gerar um mercado neoliberal regulamentado. Permiti-lo seria como consentir na escravidão, porque se trata de tráfico humano. Os pacientes ricos do Primeiro Mundo procurariam os rins dos pobres do Terceiro Mundo, e isso se transformaria em um açougue. É inconcebível que os governos autorizem algo semelhante em um mundo civilizado", conclui.


Reportagem de Aurora Muñoz para o jornal espanhol El País
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2011/08/02/moradores-da-espanha-oferecem-seus-orgaos-na-web-para-transplantes-no-exterior.jhtm
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
foto:blogdogipo.blogspot.com

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