Discurso feito pelo jornalista Chris Hedges* em Union Square, em 15 de abril  passado, na cidade de Nova York, durante um protesto feito em frente a uma das  agências do Bank of America.
Estamos aqui hoje em frente a um de  nossos templos das finanças. Um templo no qual a cobiça e o lucro são os bens  supremos, onde o valor de cada pessoa é determinado por sua capacidade de  misturar riqueza e poder à custa de outras, onde as leis são manipuladas, se  reescrevem e se violam, onde o ciclo infinito do consumo define o progresso  humano, onde a fraude e os crimes são os instrumentos dos negócios.
As  duas forças mais destrutivas da natureza humana – a cobiça e a inveja  –impulsionam os homens de finanças, os banqueiros, os mandarins corporativos e  os dirigentes de nossos dois principais partidos políticos, todos eles  beneficiários deste sistema. Colocam-se no centro de sua criação. Desdenham ou  ignoram os gritos dos que se encontram abaixo deles. Retiram nossos direitos e  nossa dignidade e frustram nossa capacidade de resistência. Fazem-nos  prisioneiros em nosso próprio país. Vêem os seres humanos e o mundo natural como  simples mercadorias a serem exploradas até ao esgotamento e ao colapso. O  sofrimento humano, as guerras, as mudanças climáticas, a pobreza, tudo serve ao  custeio dos negócios. Nada é sagrado. O Senhor dos Lucros é o Senhor da  Morte
Os fariseus das altas finanças que podem nos ver esta manhã de  suas salas e seus escritórios pelas esquinas debocham da virtude. A vida para  eles só tem o significado do proveito próprio. O sofrimento dos pobres não os  preocupa. As seis milhões de famílias expulsas de suas casas não os preocupam.  As dezenas de milhões de aposentados, cujas economias para a aposentadoria foram  anuladas pela fraude e pela desonestidade de Wall Street não os preocupam. Que  não se consiga deter as emissões de carbono, isso não os preocupa. A justiça não  os preocupa. A verdade não os preocupa. Uma criança faminta não os  preocupa.
Fiódor Dostoyevski em “Crime e Castigo” concebeu o mal absoluto  por trás dos anseios humanos não como alguma coisa vulgar, mas como algo  extraordinário, como o desejo que permite a homens e mulheres se servirem de  sistemas de autoglorificação e cobiça. No romance, Raskolnikov acredita – como  os que vivem nos tempos atuais – que o gênero humano pode se dividir em dois  grupos. O primeiro se compõe de gente comum, humilde e submissa. Gente comum que  faz pouco mais do que se reproduzir segundo a sua própria imagem, envelhecer e  morrer. E Raskolnikov despreza essas formas inferiores de vida humana.
O  segundo grupo, acredita Raskolnikov, é extraordinário. São os Napoleões do  mundo, os que desprezam o direito e os costumes, os que se desvencilham das  convenções e tradições para criar um futuro mais refinado, mais glorioso.  Raskolnikov argumenta que, mesmo vivendo todos no mesmo mundo, podemos nos  libertar das conseqüências de viver com outros, conseqüências que nem sempre  estarão a nosso favor. Os Raskolnikovs do mundo põem uma fé desenfreada e total  no intelecto humano. Desdenham os atributos de compaixão, empatia, beleza,  justiça e verdade. E essa visão demencial da existência humana leva Raskolnikov  a assassinar uma agiota e a roubar o seu dinheiro. 
Quando Dante entra na  selva escura no Inferno (canto III) ouve os gritos daqueles que “pelo mundo  transitaram sem merecer louvor ou execração”, os rejeitados pelo céu e pelo  inferno, os que dedicaram suas vidas somente em busca da felicidade. São os  “bons”, os que nunca causaram confusões, os que preencheram suas vidas de coisas  vãs e vazias, inofensivas talvez, para divertirem-se, que nunca tiveram uma  posição perante nada, nunca arriscaram nada e foram somente figurantes. Jamais  analisaram suas vidas criticamente, nunca sentiram necessidades, nunca quiseram  ver. Os sacerdotes desses templos corporativos, em nome do lucro, matam ainda  com mais inclemência, fineza e astúcia do que Raskolnikov.
As corporações  deixam que 50.000 pessoas morram a cada ano porque não podem pagar uma  assistência médica adequada. Já mataram milhares de iraquianos, afegãos,  palestinos e paquistaneses e a isso contemplaram com alegria enquanto  quadruplicava o preço das ações dos fabricantes de armamentos. Transformam o  câncer numa epidemia nas minas de carvão da Virgínia Ocidental, onde as famílias  respiram ar contaminado, bebem água envenenada e observam os Montes Apalaches  irem pelos ares, convertendo-os em uma planície deserta enquanto as companhias  carboníferas acumulam milhões e milhões de dólares. 
E após saquear o  tesouro dos Estados Unidos, essas corporações requerem, em nome da moralidade,  que se eliminem programas alimentares para crianças, a ajuda para a calefação, a  assistência médica para nossos idosos e a boa educação pública. Reivindicam que  toleremos uma classe inferior permanente que deixará em cada seis trabalhadores  um sem trabalho, que condena dezenas de milhões de estadunidenses à pobreza e  que lança os doentes mentais às grades de calefação. Os que não têm poder,  aqueles que as corporações consideram gente comum, são atirados ao lado como  lixo humano. É o que exige o “deus mercado”.
E os que perseguem o arco  iris brilhante da sociedade de consumo, os que apóiam a ideologia pervertida da  cultura consumista, se convertem, como já o sabia Dante, em covardes morais. Têm  a cabeça feita por nossos sistemas corporativos de informação e se mantêm  passivos enquanto nossos poderes legislativo, executivo e judicial de governo –  instrumentos do Estado corporativo – nos retiram a capacidade de resistir.  Democratas ou republicanos, liberais ou conservadores. Não há diferença. Barack  Obama serve aos interesses corporativos com a mesma diligência de George W.  Bush. E colocar nossa fé em algum partido ou instituição estabelecida como  mecanismo de reforma é deixarmo-nos hipnotizar pelo mito das sombras nas paredes  da caverna de Platão.
Devemos desafiar essa geringonça da cultura do  consumo e recuperar a primazia da piedade e da justiça em nossas vidas. E isso  requer coragem, não só a coragem física, mas também a coragem moral, o que é  mais difícil... A coragem moral de ouvir nossa consciência. Se tivermos que  salvar ao nosso país e ao nosso planeta, devemos ultrapassar a exaltação do  próprio ego e incorporar a isso o ego do nosso próximo. O auto-sacrifício  desafia a doença da ideologia corporativa. O auto-sacrifício destrói os ídolos  da cobiça e da inveja. O auto-sacrifício exige que nos rebelemos contra o abuso,  contra a ofensa e a injustiça que nos impõem os mandarins do poder corporativo.  Há uma profunda verdade na advertência bíblica: “Aquele que ama a sua vida a  perderá”
A vida não tem a ver só conosco. Jamais poderemos ter justiça  enquanto o nosso próximo não tiver justiça. E jamais poderemos recuperar a nossa  liberdade até que estejamos dispostos a sacrificar nosso conforto por uma  rebelião aberta. O presidente (Obama) nos decepcionou. Nosso processo de  democracia eleitoral nos decepcionou. Não restam estruturas ou instituições que  não tenham sido contaminadas ou destruídas pelas corporações. E isto significa  que tudo dependerá de nós mesmos. A desobediência civil, que significa  dificuldades e sofrimentos, que será longa e difícil, que significa  essencialmente auto-sacrifício, é o único recurso que resta. 
Os  banqueiros e os gestores de fundos de alto risco, as elites corporativas e  governamentais, são a versão moderna dos hebreus desencaminhados que se  prostraram diante do bezerro de ouro. A centelha da riqueza brilha diante de  seus olhos e os impulsiona cada vez mais rápido para a destruição. E querem que  nos prostremos também diante do seu altar. Enquanto nos inspirarmos na cobiça,  ela nos manterá cúmplices e em silêncio. Na medida, porém, que desafiemos a  religião do capitalismo sem escrúpulos, uma vez que exijamos que a sociedade  atenda verdadeiramente as necessidades dos cidadãos e que o ecossistema sustente  a vida, ao invés das necessidades do mercado, uma vez que aprendamos a dialogar  com uma nova humildade e a viver com uma nova simplicidade, uma vez que amemos  ao nosso próximo como a nós mesmos, romperemos as correntes que nos aprisionam e  faremos com que a esperança seja percebida.
(*) - Christopher Lynn  Hedges é jornalista, autor e correspondente de guerra dos Estados Unidos,  especializado em políticas e sociedades dos EUA e Oriente Médio. Seu livro mais  recente se intitula “A Morte da Classe Liberal” (2010)
foto: purareflexao.blogspot.com

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita e pelo comentário!