Um projeto de lei que pretende
liberar o aborto para mulheres pobres ou com ao menos três filhos abriu uma
forte polêmica e opôs governo e Igreja na Bolívia.
A iniciativa apresentada pelo MAS,
partido do presidente Evo Morales, pretende descriminalizar o aborto em nove
situações, sendo que três já eram previstas pela legislação local (risco para
saúde da gestante, estupro ou incesto).
A proposta determina que mulheres
possam abortar nas oito primeiras semanas de gestação em casos de pobreza
extrema ou de falta de recursos para manutenção da família. Também quando a
mulher já seja mãe de ao menos três filhos ou seja estudante - em todos esses
casos, seria permitido apenas um aborto.
Pelo texto proposto, a prática seria
permitida mais de uma vez e em qualquer etapa da gestação em casos de gravidez
até 18 anos, grave má formação fetal e nas três hipóteses já previstas (risco à
saúde, estupro e incesto).
O projeto, apresentado por setores
mais progressistas do MAS, conta com apoio de grupos de mulheres, mas desperta
forte rejeição na Igreja Católica e na oposição no Congresso.
Hoje, a legislação na Bolívia prevê
prisão de um a quatro anos para abortos fora das hipóteses previstas. O novo
projeto reduziria essa pena para até três anos, e responsabiliza médicos,
enfermeiros ou parentes caso a mulher morra em uma clínica clandestina de
aborto - poderão responder por feminicídio, que prevê até 30 anos de detenção.
Na semana passada, grupos que
defendem o projeto e integram a Confederação Nacional de Mulheres de
Comunidades Interculturais organizaram ato em defesa da iniciativa. Afirmam que
a medida foi pensada para mulheres sem recursos econômicos, que já não querem
família grande e desejam decidir sobre suas vidas, disse Amalia Coaquira, integrante
do grupo.
"As mulheres continuam sendo
obrigadas a ter relações sexuais sem preservativo e anticoncepcionais e devem
ter o direito de decidir sobre suas próprias vidas", afirmou Coaquira.
A presidente da Câmara dos Deputados,
a governista Gabriela Montaño, disse que a Bolívia não pode se caracterizar
pela desigualdade entre "mulheres que têm dinheiro para interromper a
gravidez e as que morrem por falta de dinheiro".
O governo diz que a
medida visa reduzir a mortalidade de mulheres no país. A ministra da Saúde da
gestão Evo, Ariana Campero, justificou a iniciativa afirmando que "13% das
mortes maternas são resultado de abortos em locais clandestinos" e que a
maioria das mulheres que recorrem a esses expedientes são pobres.
"Temos que ser
muito mais pragmáticos e objetivos. Nenhuma mulher pode morrer mais na Bolívia
porque interrompeu a gravidez", afirma a ministra.
Oposição da Igreja
A polêmica envolveu
o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, e a cúpula da Igreja
Católica.
O secretário-geral
da Conferência Episcopal da Bolívia, monsenhor Aurelio Pesoa, afirmou que o
projeto "distorce o sistema penal, introduzindo a pobreza como motivo para
impunidade por crimes como o infanticídio". Rejeitou ainda a ideia de que
"ser pobre seja justificativa para violar qualquer lei".
García Linera reagiu
citando o papa Francisco. "O papa Francisco emitiu uma forte mensagem ao
mundo quando disse que as mulheres que praticam o aborto devem ser perdoadas. E
com isso disse que devemos encontrar um equilíbrio entre os princípios éticos e
a proteção e liberdade da mulher", disse o vice-presidente à rede ATP, em
referência a declarações do pontífice feitas em novembro de 2016.
Em entrevistas à BBC
Brasil, o deputado Víctor Borda, do MAS, e a senadora de oposição Jeanine
Chávez, da Unidade Democrata (UD), defenderam pontos de vista antagônicos sobre
o projeto.
Borda, que
apresentou o projeto à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados, disse que a proposta não é descriminalizar o aborto, mas "abrir
exceções na legislação em vigor" para atender mulheres carentes.
"Vemos mulheres
indigentes, sem recursos e condições de criar um bebê que precisam de ajuda. E
muitas vezes elas recorrem a um lugar clandestino, o que é um risco",
disse, reforçando a linha de argumentação do governo. "Vivemos em uma
sociedade machista. O aborto é uma realidade e não é mais possível que seja
encarado como tabu."
O deputado, que disse ser pai de
quatro filhos e ter uma mulher grávida de oito meses, afirmou que a proposta
"é para o bem das mulheres". "Mas os setores conservadores da
Igreja parecem não ter lido o projeto."
Para a senadora Jeanine Chávez, o
projeto significará, na prática, a descriminalização do aborto, tese que o
governo rechaça. "Querem abrir uma porta para permitir o aborto,
desrespeitando princípios e valores. Além disso, é mesquinho e até grosseiro
usar a pobreza para justificar essa medida que vai contra nossa Constituição e
os direitos da criança e do adolescente", afirmou.
A parlamentar de oposição disse que
os apoiadores da proposta tentam minimizar a importância da vida da criança ao
usarem apenas a expressão "feto". Caso o projeto seja aprovado,
afirmou, "qualquer pessoa argumentará que é pobre para não levar uma
gravidez pra frente".
A expectativa, até o momento, é que o
projeto seja aprovado na Câmara e no Senado, onde o governo conta com maioria
dos votos.
No entanto, em 2012, quando Evo já
era presidente, uma iniciativa para ampliar as hipóteses de aborto legal na
legislação, mas que não incluía a questão da pobreza, foi vetada pelo Tribunal
Constitucional do país.
"O debate de agora é social, mas
ainda virá a parte constitucional da discussão, que gera muita polêmica",
afirmou o jornalista Carlos Calderón, diretor de Redação da agência de notícias
Red Erbol.
Reportagem Marcia Carmo
foto:https://visionzinternacionalbolivia.blogspot.com.br/2014/09/la-arremetida-de-la-iglesia-en-bolivia.html?m=0
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