28/03/2017

“De quem é a Patagônia?”: Tensão cresce entre indígenas e latifundiários no paraíso argentino


Carlo Benetton, o irmão caçula da família que controla o império têxtil italiano, é um dos muitos milionários do planeta apaixonados pela Patagônia argentina. Em 1991, o grupo comprou neste paraíso 900.000 hectares (uma área equivalente a seis vezes o município de São Paulo) onde cria quase 100.000 ovelhas, que chegaram a produzir 10% da lã usada pela marca. Carlo viaja quatro vezes por ano para desfrutar com seus amigos do lugar, e de passagem controlar a produção da matéria-prima. Mas sua plácida e enorme propriedade enfrenta agora um problema com o qual ninguém sabe lidar: um grupo de mapuches, indígenas que ocupavam estas terras até serem praticamente aniquilados pelos argentinos no final do século XIX, se instalou numa pequena parte da fazenda com a intenção declarada de “começar a reconstrução do povo mapuche”. “É como se eu agora fosse a Inverness, na Escócia, para reivindicar as terras dos meus antepassados”, protesta Ronald McDonald, um neto de escoceses que chegaram à Patagônia para criar ovelhas, administrador-geral da empresa de Benetton, a Compañía de Tierras del Sud Argentino. McDonald percorre com um jipe a enorme propriedade numa paisagem assustadora, com os majestosos Andes ao fundo. Só as ovelhas e o vento patagônico rompem o silêncio. Os gauchos que as pastoreiam também são mapuches. Alguns são primos dos rebeldes. Mas uns ganham salário da Benetton e montam cavalos selados, enquanto outros não têm quase nada e montam em pelo, como seus antepassados.
A tensão é permanente. “De quem é a Patagônia? Eles falam de violência, mas mataram e humilharam nossos avós, entregaram as meninas aos homens de Buenos Aires. Eles abaixavam a cabeça, nós dissemos chega. Não temos mais medo”, desafia Soraya Maicoño, porta-voz do grupo. A Constituição argentina permite a reivindicação de terras dos povos originários, mas a Benetton recusa o direito ancestral ao qual apelam os mapuches, alegando que estes vieram do Chile. “Aqui são tão imigrantes como meu avô”, arremata McDonald.
A Patagônia sempre foi uma terra de excessos e foragidos. A poucos quilômetros da fazenda da Benetton, em Cholila, refugiaram-se em 1901 Butch Cassidy e Sundance Kid, míticos bandidos dos EUA. Quase tudo aqui sempre foi feito na marra. E desta vez não parece diferente. Em Leleque, a propriedade principal da Benetton, os funcionários mostram que são uma companhia produtiva, e não uma casa de campo para milionários. Está tudo em regra, mas a empresa nunca esclarece por quanto a família comprou estas terras imensas. A Justiça está ao seu lado. Por enquanto, os mapuches só têm um pequeno povoado com lojas e 20 pessoas de forma permanente. Mas estão muito organizados e dispostos a resistir como for. Instalaram-se aqui há quase dois anos, e a última tentativa de desocupação acabou com 14 feridos, um deles alvejado pela polícia. McDonald defende o modelo de enormes latifúndios, frequente em toda a Argentina. “Na Patagônia só funcionam as grandes extensões, por causa dos invernos tão duros. Se lhes dermos alguns hectares, só terão uma economia de subsistência com ajudas do Estado. Desta forma temos 130 empregados diretos e damos trabalho a 200 pessoas com uma economia sustentável”, argumenta.
A poucos quilômetros, em Vuelta del Río, fica a zona ocupada. Jessica, uma mapuche que veio de Esquel, acomoda seu lenço palestino na cabeça junto à porta de uma precária guarita. Numa fogueira – eles vivem sem água corrente nem eletricidade – cozinham carne e tentam suportar o frio. Alguns usam capuzes para não serem reconhecidos. “A Benetton é o foco do conflito por causa do seu peso político. O objetivo principal é nos fortalecermos como povo”, diz Jessica. Mirtha, de traços mais claramente indígenas, desceu das reservas de Cushamen: “Eles têm balas, nós pedras. Sabemos que estão desesperados por nos tirar daqui. Mas não vão conseguir”, afirma, com segurança. Não arredam pé. Já há inclusive uma criança nascida no acampamento. Seu plano é de longo prazo: convencer todos os mapuches a se rebelarem contra a Benetton e outros latifundiários, e construir um novo Estado dentro dos atuais territórios chileno e argentino. “Não reconhecemos fronteiras, nosso povo abrange de mar a mar”, conta Maicoño. Atilio e Rosa Curiñanco ficaram famosos em 2007 porque ocuparam outro terreno da Benetton. Chegaram a viajar à Itália para tentar convencer o patriarca Luciano, sem sucesso. Assim, continuam ocupando 500 hectares sem papéis, nem direitos. Mas ninguém mais tenta expulsá-los. Não aprovam a violência. “A maneira de lutar desses jovens não é aceita pelas 110 comunidades daqui. Mas sim a ideia de recuperar as terras. Aqui destruíram uma cultura. Viemos de sangue milenar, e queremos juntar o que o huinca [branco] esparramou”, diz um dos mapuches no seu pequeno sítio, onde mantêm apenas algumas galinhas. Como não possuem máquinas, é difícil para eles cultivar as terras. Já completaram 10 anos ali e se sentem livres, embora vivam na pobrezaabsoluta.
Os indígenas não estão sozinhos, pois contam com um forte apoio social e político. “Não são meia dúzia de malucos, há uma organização por trás, a Resistência Ancestral Mapuche”, indigna-se McDonald, queixoso do apoio da Anistia Internacional aos mapuches. Ele gostaria que o Estado argentino fosse tão duro como o chileno, que lhes aplica a lei antiterrorista. Na verdade, o líder destes mapuches, Facundo Jones Huala, é alvo de um pedido de extradição do país vizinho. “O Chile tem um Estado presente, se não isto vira um faroeste. Nosso pessoal está muito preocupado. Ordenei a eles que não aceitem provocações, mas é preciso acalmá-los. Porque já atormentaram vários empregados. Isto na Patagônia nunca aconteceu”, afirma, enquanto mostra junto a Juan Chuquer, diretor de reflorestamento da empresa, os pinheiros plantados nas terras reivindicadas pelos mapuches. “Esta empresa é a Benetton, mas também somos nós, os que trabalhamos aqui”, diz Chuquer. “Fizemos um reflorestamento para que um dia haja uma madeireira que dê trabalho ao povo. É um investimento para 50 anos, não podem dizer que estamos saqueando. Há 25 anos não havia ninguém por aqui, hoje várias famílias vivem de plantar e cuidar das árvores. Ameaçam queimar os pinheiros, já queimaram um casebre de trabalho. Nossa segurança física está em risco. Assim não se pode continuar.” diz. O juiz de Esquel que ordenou a última reintegração de posse, Guido Otranto, conta que os agentes encontraram coquetéis molotov. “São violentos, embora não possam ser chamados de terroristas, como querem alguns”, enfatiza. Todos sabem que esta não é uma batalha por alguns hectares. A briga de fundo questiona a construção de um continente a sangue e fogo. Por isso, o tempo não é um problema para ninguém. Na Patagônia tudo vai devagar. Mas em sua silenciosa paisagem de sonho a tensão é evidente. A qualquer momento pode eclodir a fagulha definitiva.
Reportagem de Carlos E. Cué
fonte:http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/27/internacional/1490626020_914629.html
foto:http://www.joaoaraujopromocao.com/single-post/2017/01/05/Qual-a-melhor-%C3%A9poca-para-se-vistar-a-Patag%C3%B4nia

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